Era um edifício de tijolo vermelho impecável na Rua Nove, perto da minha
casa, pelo qual tinha passado muitas vezes sem reparar. Escadas de pedra e uma luz quente e confortável no interior. No passeio, uma senhora passeava o cão, um Boston terrier preto e de olhos esbugalhados. Sorriu-me. Interroguei -me se de alguma maneira ela sabia que eu era uma alma em difi culdades.
O meu problema recente fez-me lembrar um instrutor que tive na
universidade, um israelita, sempre a rir-se da ingenuidade americana, que gostava de dizer: «Com o Freud, somos todos poetas nos nossos sonhos.» Para ele, a psicanálise e a interpretação dos sonhos eram maneiras de transformar as nossas pequenas misérias pessoais em mitos grandes e robustos. Eu não tinha qualquer intenção de fazer isso quando entrei no teu consultório. O meu problema, embora talvez pouco comum, parecia mais uma mania do que uma crise; não queria dramatizar, nem ser o herói que faz as perguntas certas, decifra os enigmas e mata o dragão num épico entoado nas ruas de Manhattan. Na verdade, posso dizer sinceramente que não tinha memória dos acontecimentos que descrevo nestas páginas — memória consciente, memória actual. São coisas que vivi na infância e que depois fechei num arquivo juntamente com os jogos de futebol, os presentes de Natal e as bolachas Nutter Butters proibidas à meia-noite. Com ambos os pais já falecidos e sem irmãos — e com muitas antigas relações cortadas —, o único caminho para o meu passado era através da mente. É estranho, por isso, e uma homenagem à tua pessoa, que tenhas descoberto isso no primeiro dia em que me conheceste.
O vestíbulo cheirava a alcatifa húmida, e a lâmpada estava fundida. Um
começo pouco auspicioso, pensei. O edifício de tijolo vermelho era claramente uma residência privada. Havia caixas de correio no vestí bulo e uma bicicleta de montanha guardada debaixo das escadas. Aproximei -me do apartamento com a tabuleta «Dra. H. SURMAN». Bati à porta e apareceste, apertando-me a mão, sorrindo, mandando-me entrar no teu consultório, indicando-me uma cadeira de verga numa sala agradável com luz abundante (mas persianas dis-cretas nas metades inferiores das janelas), plantas pendentes, várias almofadas e um odor a canela que talvez fosse uma espécie de aromaterapia (por que não?, pensei, receber plena compensação pelo que tinha pago). Entrelaçaste os dedos e o teu sorriso de saudação mudou para um sorriso de simpatia profi s-sional. Passei as mãos pelos braços da cadeira e reparei nos rasgões na verga.
— Quantas pessoas não terão arranhado esta cadeira em ataques de
angústia mental — comentei, forçando um riso.
Sorriste como uma esfi nge. Entrávamos então verdadeiramente em
território psiquiátrico: eu tinha feito um comentário revelador, tu não caíste na armadilha, recusando-te a divulgar informações sobre os outros pacientes ou a zombar do seu sofrimento. Muito bem.
— Então — começaste —, o que o traz por cá?É engraçado como os pacientes te devem parecer banais. Como cen-
tenas antes de mim, entrei ali convencido de que meia dúzia de irritações e tristezas constituíam os «meus problemas». E depois, como centenas de outros, acabei por perceber como os factos, expostos, começavam a revelar padrões. Percebi a lógica subjacente à minha perturbação logo naquela pri-meira hora, mas apenas vagamente. Foi apenas um tremor, que depois se alargaria e intensifi caria e, por vezes, ameaçaria submergir-me. Mas eu era um principiante nesse primeiro dia; um rapaz da cidade preparando-se para descer o Amazonas de canoa, cheirando o ar húmido e sentindo as primeiras sacudidelas da viagem de Jeep e pensando, «Ah, isto não é assim tão mau», quando nem sequer tínhamos tirado as canoas do tejadilho do carro.
Falei-te do meu fi lho. — Não consigo pegar nele — revelei. Contei-te como nos primeiros dias aquilo parecera a ansiedade nor-
mal: quase enlouquecido pela falta de sono, saltando da cama às três da manhã para ver como estava a respiração do bebé, o medo de que pudesse
de alguma maneira quebrá-lo. No entanto, confessei-te, passaram-se dias, depois semanas, e ainda não conseguia suportar pegar nele — nem mesmo tocar-lhe. Quando, por breves instantes, me encontrava sozinho com ele, deixava-o fi car no berço e sentava-me ao lado, inalando o seu delicado odor a bebé e sentindo-me aterrorizado, como se pudesse cair da Terra, perder a gravidade e lançar-me no espaço.
— Isso parece um pouco exagerado — reconheceste. No fi nal do primeiro mês, esperava que a minha negligência pudesse ser
atribuída a nervosismo paternal. Alguém repararia se trabalhasse mais horas que o costume; se saísse do quarto quando a minha mulher entrasse com ele; evitasse a minha mulher quando ela lhe desse de mamar; se não lhe trocasse as fraldas, desse banho, tocasse? Fiz passar o meu comportamento por antiquado: eu era machão. Mas mudei de outras ma neiras. Tornei-me irritadiço, amargo, subitamente desconfi ado da minha mulher. Após dois meses a desempenhar o papel de pai substituto, a minha sogra começou a fazer comentários. No início, por trás das minhas costas, mas por fi m abertamente. A minha mulher defendeu-me durante algum tempo. Mas o trabalho extra cansava-a — e a minha aparente indolência deixava-a de rastos. As palavras e críticas mordentes transformaram-se em discussões, as discussões em guerra.
Finalmente, com lágrimas a escorrer-lhe pelo rosto, ela admitiu que
já não podia conceder-me o benefício da dúvida, baseando-se em quatro anos de casamento e nove meses de afecto durante a sua gravidez. A minha indiferença naquele momento fê-la julgar que nunca me havia conhecido; estava desiludida; preocupava-se com o futuro do nosso fi lho, e com o futuro dela. O meu comportamento era inexplicável, imper doável. Como podia continuar casada com um homem incapaz de cuidar do próprio fi lho? Queria que eu lhe desse uma explicação, ou procurasse ajuda. Em qualquer caso, a escolha era entre mudar ou partir. E, bolas, pensa no nosso fi lho, excla-mara, de modo tão lamentável que lhe confessei que na presença do bebé fi cava paralisado. Às vezes tremia apenas; outras entrava num transe de meia hora, uma hora. Não por causa da normal ansiedade parental; mas devido a uma profunda sensação de nulidade, choque, desorientação. Também era terrível para mim. Jurei-lhe que a amava e ao nosso fi lho mais do que tudo. No entanto, o sentimento que se apoderava de mim parecia incontrolável. Tinha esperado que passasse. Mas não passou.
A minha mulher fi cou aliviada por saber que não era ela que estava louca.
Prometemos um ao outro que tentaríamos resolver o problema. E ali estava.
— Já teve ataques de ansiedade semelhantes no passado? — pergun-
Nunca, respondi-te. Perguntaste-me sobre o meu emprego, a minha educação, a minha
história clínica, a minha saúde. Respondi a todas as tuas perguntas.
— Bem — disseste, franzindo o sobrolho. Fizeste uma recapitulação do que eu havia descrito. Concordei que
tinhas compreendido os problemas. Depois seguiu-se uma pausa, que eu, estando nervoso, me apressei a interromper.
— Não é a primeira vez que venho a um psiquiatra, pensando bem
Se fosses um cão, teria visto uma orelha levantar-se. — Ah, não?— Não — respondi —, fui em miúdo. — Que idade tinha?— Onze anos. — Foi uma boa experiência?— Sim, acho que sim. Senti-me melhor depois. — Ainda bem. Gosto de saber quando as pessoas tiveram experiências
positivas com a psiquiatria. Torna as coisas mais fáceis, da próxima vez. Não que a tarefa se torne mais fácil.
— Claro que não. — Importa-se que lhe pergunte por que razão consultou um psi-
— Andava. deprimido. Inclinaste a cabeça. Tens boa intuição. — Parece não ter a certeza. — Acho que. — Hesitei. — Costumo dizer «deprimido» porque
resume uma data de coisas. — Depois ri-me. — Digamos que, se lhe contasse, não acreditaria em mim.
— Não me está a dar muito valor. — Não tem nada a ver consigo. Esperaste.
— Hã. — continuei. — Tinha a ver com. coisas fantasmagóricas. — Fantasmagóricas? Quer dizer estranhas? Agora fi quei curiosa. — É difícil explicar. — Está bem. Pingue. As palavras pairaram no ar. Não sabia se estavas a dizer para
passar a outro assunto ou à espera que eu explicasse. Estava a fi car cansado de brincar aos psiquiatras.
— Oiça — comecei. — Hoje em dia muito poucas pessoas são reli-
giosas. Sobretudo na cidade. Não gostam de falar de religião, nem do sobrenatural, nem sequer de admitir que essas coisas existem. excepto nos programas de televisão. Olham-nos com um desdém frio; és rotulado de provinciano, alguém do Bible Belt 1. Eu sou da Virgínia. E francamente. bem, a doutora é uma cientista da mente. Eu não gostaria de ver as coisas em que acredito encaradas como espécimes, ou metáforas, ou esvaziadas como um balão com cepticismo profi ssional. Tenho a certeza de que já trabalhou num hospital psiquiátrico pelo menos uma vez na sua carreira e que já tratou maluquinhos a declamar sobre Deus, anjos e demónios, e não quero uma receita médica para Haldol — rematei, ofegante. — Sem querer ofender.
— Então todos os psiquiatras são judeus intelectuais e ateus do Upper
West Side que fazem pouco do cristianismo?
— Não foi isso que quis dizer. — Tudo bem — respondeste. — Não tem de falar do que não quer
falar. Mas — continuaste, com um sorriso —, posso já dizer-lhe, pelo seu aspecto, que não vai precisar de Haldol.
Ergui as sobrancelhas. — Quer apostar?Durante um breve instante, crepitou alguma tensão entre nós. — Podemos falar antes do presente? — sugeri. — Com certeza — respondeste, parecendo aliviada. Regressámos às boas maneiras e concluímos a sessão. Os cinquenta
minutos tinham passado depressa. Mas eu fi cara perturbado, como se tivesse um outro canal aberto, sentindo uma maré de recordações puxando
1 Região dos Estados Unidos que abrange vários estados do Midwest e do Sul, em que
o protestantismo evangélico e a direita religiosa são tradicionalmente dominantes. (NT)
por mim. Apesar da tensão momentânea, ou talvez por causa dela, estendi--te a mão e aceitei continuar com as consultas. Gostei de ti. És inteligente. Quando ia a sair, chamaste-me.
— Disse que gostava de escrever num diário — lembraste, aludindo
a um comentário que eu tinha feito.
— Sim. — Talvez possa escrever alguma coisa para mim. Para nós, aqui. — Está bem. — Como concordei que era melhor concentrar as nossas energias
no presente, talvez o passado seja algo em que pode começar a trabalhar sozinho. Comece um caderno. Olhe, até lhe dou um, para não ter descul-pas para adiar. — Tiraste dois cadernos de espiral da prateleira. — Os mesmos que eu uso. Escreva-me sobre aquela última visita ao psiquiatra. quando tinha onze anos. Não tem de me mostrar nada. Está bem?
Aceitei os cadernos. — Sim, claro — respondi, rouco. — Também quer uma caneta?— Acho que consigo arranjar uma. — Óptimo. — Seguraste a porta e voltaste a sorrir. — Espero que
Lá fora, nas escadas, a luz tinha mudado. A luz do dia retira-se tão
cedo no Inverno. A rua estava mergulhada numa penumbra azul e som-bria. Devia ter adivinhado, depois de entrar no consultório de uma psi-quiatra, que voltaria a sair para a mesma rua como se esta fosse um planeta diferente. Detive-me por um momento. Uma mulher de sobretudo preto e sapatos fi nos caminhava na minha direcção. Trazia um volumoso saco de compras e roçou por mim ao passar, obrigando-me a apoiar-me no corrimão de ferro fundido. Abri a boca para dizer qualquer coisa, mas, quando ela passou por mim, percebi que não lhe conseguia ver o rosto, apenas uma mancha no lugar do rosto, e fi quei de boca aberta com o agressivo Cuidado preso na garganta. A rua acalmou, como pode acontecer em Nova Iorque. Sentei-me nos degraus, com os teus cadernos na mão, lembrando-me de coisas más.
CURRICULUM VITAE INFORMAZIONI PERSONALI Data di nascita Qualifica Amministrazione Incarico attuale Numero telefonico dell’ufficio Fax dell’ufficio E-mail istituzionale TITOLI DI STUDIO E PROFESSIONALI ED ESPERIENZE LAVORATIVE Titolo di studio Altri titoli di studio e professionali conseguita presso università degli studi di Napoli FedericoII, Na