Revista de letras n 28

Irenísia Torres de Oliveira*
Resumo
fora escrito, cheia de inquietações e problemas, além das cir- Este artigo apresenta algumas das importantes lei- cunstâncias da publicação, levada a termo na sua ausência.
turas críticas do romance Angústia, de Graciliano Ramos, Referia-se a essa impossibilidade de revisão com pesar, pois nos seus setenta anos de publicação, objetivando traçar um é conhecida a obsessão que tinha pelo enxugamento, pela re- panorama das principais visões que se consolidaram sobre dução ao essencial e, em suma, pelo corte. Na mesma carta, a obra e das orientações teóricas que as embasaram. Por diz que teria sido preciso cortar pelo menos uma quarta parte fim, faz um breve comentário crítico às propostas de inter- do livro, para torná-lo aceitável.(CANDIDO, 2006, p. 11).1 pretação, que tendem a dividir-se entre investigações da Apesar da autocrítica veemente do autor, o livro, em psicologia individual, por um lado, e do contexto social no geral, foi recebido com elogios pela crítica, tendo sido mui- tas vezes comparado, na intensidade e complexidade, comas obras de Dostoiévski. Tal ligação era considerada como Palavras-chave: Graciliano Ramos, Angústia, romance
descabida por Graciliano, que não aceitava ser comparado com um “gigante” como o autor russo. Mas, de fato, Angús-tia é das poucas obras na Literatura Brasileira que fazem Abstract
This article shows some of the important essays A história do romance é contada por seu protagonis- about Graciliano Ramos novel Angústia, at the seventy years ta, Luís da Silva, último filho de uma família rural decaden- of its publication, aiming to map the main points of view te. Atormentado pelas lembranças do tratamento rude rece- that the literary criticism has consolidated about the bido na infância, pelas figuras do avô e do cangaceiro José concerned narrative. Finally, it makes a brief critical Bahia, migra para a cidade, passa também ali por misérias e analysis of the presented interpretations, that tend to divide humilhações, mas termina conseguindo um emprego como between investigations of individual psichology and of so- jornalista. Enceta um noivado com sua vizinha, Marina, moça pobre e fútil, e entrega a ela as suas economias para osuposto enxoval. Julião Tavares, filho de comerciante da Keywords: Graciliano Ramos, Angústia, modern novel.
cidade, que encarna todas as características detestáveis paraLuís, aproxima-se dele e toma-lhe a noiva, a quem depois O romance Angústia foi publicado em 1936, quando abandona, grávida. Desesperado com constrangimentos de Graciliano Ramos encontrava-se preso por motivos políti- toda sorte, no trabalho e na vida pessoal, Luís vai mergu- cos, no contexto da Ditadura Vargas. Os manuscritos foram lhando cada vez mais numa atmosfera de obsessão e delírio, entregues para datilografia no mesmo dia da prisão do au- que o leva a estrangular Julião Tavares. A história é contada tor, no mês de março, tendo o livro vindo à luz em agosto.
depois do crime, sem que a vida de Luís ou seu sentimento Em carta de 1947, endereçada a Antonio Candido, de frustração em nada se tenha alterado.
Graciliano procura explicar ao crítico o que considerava as Antonio Candido, no ensaio Os bichos do subterrâ- origens dos defeitos de Angústia: a época difícil em que neo, compara o narrador de Angústia ao de Notas do subsolo, * Professora da Universidade Federal do Ceará – UFC, bolsista DCR CNPq/FUNCAP.
1 Nos volumes de Memórias do Cárcere, podemos encontrar registros das circunstâncias do aparecimento de Angústia, publicado pela editora José Olympio, com as diligências de outro escritor nordestino, José Lins do Rego.
Rev. de Letras - N0. 28 - Vol. 1/2 - jan/dez. 2006 do autor russo.“Ambos são homens acuados, tímidos, vai- definidora em outros romances, qual seja, aquilo que no in- dosos, hipercríticos, fascinados pela vida e incapazes de divíduo resistia a ser reduzido aos padrões de sociabilidade vivê-la, desenvolvendo um modo de ser de animal perse- ou, em outras palavras, o núcleo irredutivelmente primitivo guido.” (CANDIDO, 1992, p. 82) A busca do homem sub- terrâneo que existe em cada um de nós e resiste à padroni- Antonio Candido produziu seus primeiros ensaios zação social, teria sido, aliás, segundo o crítico, a tônica sobre Graciliano em meados dos anos 40, quando era crí- dos três romances de Graciliano narrados em primeira pes- tico titular do jornal Diário de São Paulo. Por ocasião da soa: Caetés, o primeiro romance, de 1933, São Bernardo, publicação de Infância, em 1945, decidiu fazer um balan- de 1934, e Angústia, por último, de 1936.
ço da obra do autor até aquele momento, considerando seu Os caetés do primeiro romance, teriam, para Anto- destaque entre os “romancistas do Nordeste”, e dedicou- nio Candido, uma função simbólica, encarnando o que ha- lhe uma série de cinco estudos, um para cada livro. Anos via de selvagem no homem e “lembrando que, ao raspar-se depois, atendendo a um pedido de Graciliano, Antonio a crosta policiada, desponta o primitivo, instintivo e egoís- Candido reuniu os cinco artigos, produziu mais um sobre ta, bárbaro e infantil.” (ibid., p. 75) Paulo Honório, de São as Memórias do Cárcere e acrescentou-lhes uma conclu- Bernardo, também trazia em si um caeté, reconhecendo-se são, dando origem ao ensaio que figuraria como introdu- ele mesmo como um bicho, reduzido ao animal, na luta pela ção nas edições das obras do autor de 1955 a 1974, com o vida. Angústia, focalizado do ponto de vista da personali- título de Ficção e Confissão. Em 1959, escreveu o ensaio dade, era o romance onde a intenção de desvelamento se Os bichos do subterrâneo, para a edição Nossos Clássi- acentuava ao máximo. A personalidade de Luís da Silva cos, da Editora Agir, que complementava aquele outro es- apresentava-se “mais complexa, levando ao extremo (.), tudo e revia sua posição anterior, com restrições talvez certas constantes dos personagens anteriores; ele é por ex- excessivas, acerca de Angústia.
celência o selvagem, o bicho, escondido na pele dum bur- De um ponto de vista social mais marcado, será o guês medíocre.” (Ibid., p. 80) ensaio publicado por Carlos Nelson Coutinho, quase uma A análise de Antonio Candido centra-se na persona- década depois, em 1967, seguindo de perto as idéias e o lidade dos narradores e na maneira, cada vez mais comple- aparato técnico do importante crítico marxista húngaro xa, com que vão sendo construídos. Ao lado disso, também mostra o aumento da complexidade na estruturação da nar- Carlos Nelson procura os tipos sociais que existem rativa. Em Caetés, o peso do ambiente ainda é grande; a nas personagens de Graciliano, ou seja, de que maneira eles descrição minuciosa das cenas e o diálogo realista assumem representam um modo social de ser, para além da existência tanta significação quanto o próprio protagonista. O diálogo individual. Se na análise de Antonio Candido privilegiava- reduz-se, em São Bernardo, e é veículo de desencontro mais se o romance como instrumento de investigação psicológi- que de comunicação, assumindo função expressiva mais ca, ainda que a psique do indivíduo seja mostrada na luta complexa. Já em Angústia, tudo é violentamente distorcido com os constrangimentos sociais, o ensaio de Carlos Nel- e fragmentado pela visão do protagonista, estruturando-se a son enfatiza a investigação da sociedade nordestina, consi- narrativa em três planos, que concorrem para a criação derada também representativa da sociedade brasileira. Logo intrincada da personalidade de Luís da Silva.
no primeiro parágrafo do ensaio, o crítico esclarece: “Odestino de seus personagens [de Graciliano], seu modo de A narrativa não flui, como nos romances anterio- agir e de reagir em face das situações concretas em que se res. Constrói-se aos poucos, em fragmentos, num encontram inseridos, são manifestações típicas de toda a ritmo de vaivém entre a realidade presente, descri- realidade brasileira.” (COUTINHO, 1978, p. 73) ta com saliência naturalista, a constante evocação Neste ensaio, o momento histórico assume um papel do passado, a fuga para o devaneio e a deforma-ção expressionista. Daí um tempo novelístico mui- explicativo maior. A obra de Graciliano é enfocada pelo to mais rico e, diríamos, tríplice, pois cada fato ângulo de sua inserção na crise de um país semicolonial, apresenta ao menos três faces: a sua realidade ob- que não havia conseguido renovar-se econômica e social- jetiva, a sua referência à experiência passada, a mente. “Os movimentos de renovação e de transformação, sua deformação por uma crispada visão subjetiva. que começavam a esboçar-se (apenas a esboçar-se) por todo o País, chocavam-se no Nordeste, com barreiras mais fir-mes, com obstáculos quase intransponíveis” (Ibid., p. 74).
Na análise desses três romances, o crítico privilegia Esta situação concreta tornava mais forte o choque social a perspectiva psicológica para explicar a forma de no Nordeste, entre instituiçõess antigas, como a base agrá- estruturação narrativa, uma vez que eles partem abertamen- ria, o patriarcado e o clientelismo, e formas liberais mais te do ponto de vista individual, mesmo no caso de Caetés, modernas de sociedade, baseadas na indústria e no comér- em que o peso do ambiente é maior. Neste romance, aliás, cio urbano, constituindo uma forma de organização da vida já se sentiria a perplexidade cada vez mais presente e mais propriamente burguesa. Por ser o palco dessa disputa Rev. de Letras - N0. 28 - Vol. 1/2 - jan/dez. 2006 na sua forma mais “clássica”, o Nordeste daria então a for- Voltando-se para o assunto propriamente social, lem- ma típica, representativa, do processo de passagem de uma bra também que, assim como em Vidas Secas, a miséria eco- economia semifeudal para uma capitalista moderna no Bra- nômica assume um papel decisivo no destino do protago- sil, com todos os seus impasses e peculiaridades.
nista. Em Angústia, a miséria de Luís da Silva, leva-o a O interesse de Carlos Nelson, portanto, é entender a abdicar completamente de alguma dignidade. Em busca de obra de Graciliano, seus personagens e tramas, como forma valores autênticos no mundo degradado, como herói pro- de investigar esse processo. Não é de estranhar, em decor- blemático (categoria lukacsiana), o protagonista de Angús- rência, que o romance mais apreciado pelo crítico seja São tia verá também degradadas suas ações. Carlos Nelson ava- Bernardo, que ele considera “uma das obras mais autentica- lia que o assassinato de Julião Tavares decorre da busca de mente realistas da literatura nacional”. (Ibid., p. 84) valores autênticos, mas é uma ação degradada, além de inú- Em relação a Angústia, o crítico procura mostrar til, como reconhece o próprio Luís.
como este livro também é de um “realismo verdadeiro”, Resumindo, para Carlos Nelson, Angústia é um ro- mesmo mostrando-se formalmente vanguardista, que trata mance que utiliza técnicas vanguardistas para abordar o de assuntos objetivos da sociedade brasileira, mesmo apa- conteúdo novo do emparedamento do indivíduo, na circuns- rentemente dissolvendo-os na subjetividade. Estas oposições tância da crise brasileira entre as estruturas agrárias e patri- – entre realismo e vanguarda, entre objetividade épica e arcais e a pressão de movimentos modernizadores, em dire- ponto de vista subjetivo – seguem de perto as restrições do ção a uma organização burguesa da vida.
crítico húngaro Georg Lukács aos romances de vanguarda O balanceio entre análises de caráter psicológico e europeus. Estes teriam desistido de representar a objetivi- sociológico, na fortuna crítica de Angústia, é mencionado dade do mundo ao desligar a personagem da realidade con- no livro O romance da urbanização (1999), do professor creta e social e tornar a condição de isolamento e solidão do da UFPR Fernando Cerizara Gil, como ponto de partida para indivíduo uma condição dada e eterna, ôntica, ou seja, do sua análise do romance de Graciliano. Fernando Gil julga próprio ser, ao invés de condição histórica e social. Este que esse movimento pendular, do psicológico para o socio- debate terá grande importância na primeira metade do sécu- lógico e vice-versa, é motivado pelo caráter do romance, lo, na Europa, e oporá intelectuais de grande estatura como que coloca no centro da discussão novas questões históricas Lukács, Walter Benjamin e Theodor Wiesengrund Adorno.
envolvendo a obra, o sujeito e a sociedade brasileira. O ob- Voltando a Angústia, Carlos Nelson reconhece nele jetivo da crítica proposta seria, portanto, tratar esses três a qualidade de “tecnicamente vanguardista”, pelo uso in- tensivo do monólogo interior, inclusive com a livre associa- Este ensaio tomará como base dois outros estudos que ção de idéias, e a radical fragmentação do tempo. Entretan- marcam as referidas posições: o de cunho sociológico será o to, essas técnicas não figurariam nele apenas como de Carlos Nelson, que já vimos, e o de base psicanalítica será experimentação mas teriam a finalidade de buscar a forma A ponta do novelo: uma interpretação de Angústia, de adequada à representação de um conteúdo novo. “Este novo Graciliano Ramos (1983), de Lucia Helena Carvalho.
conteúdo, em Angústia, expressa-se por uma acentuação O estudo de Lucia Helena Carvalho propõe a idéia dramática das paredes do ‘pequeno mundo’, do cárcere da de construção em abismo na composição de Angústia. Per- solidão e da impotência em que está encerrado o homem sonagens, imagens e ações surgindo e ressurgindo em vári- as dimensões, em tempos diferenciados, constroem de ma- Comparando-o com os outros romances de Graciliano neira sempre vertiginosa sua significação. “Desdobramento narrados em primeira pessoa, Caetés e São Bernardo, como infinito e repetição, conjugados, processam o adentramento o fizera Antonio Candido, Carlos Nelson vê neste romance vertiginoso que instaura a virtualidade significativa que a um caso completamente diferente. Naqueles dois ainda se autora entende por abismo.” (GIL, 1999, p. 67) Propõe ain- pode reconhecer técnicas especificamente naturalistas da a divisão tipolótica das micronarrativas dentro de An- (Caetés) e realistas (São Bernardo). Em Angústia, o fluxo gústia, segundo os paradigmas da morte e do erotismo, que da consciência freqüentemente substitui a narrativa épica estariam na base da reduplicação dos acontecimentos.
tradicional. Considerando ainda aquelas três dimensões do Como resumo da avaliação dos dois ensaios, de tempo (presente, presente subjetivo e passado), que se mes- Carlos Nelson e de Lucia Helena Carvalho, Fernando Gil clam e revezam no romance, o resultado é um universo considera que ambos partem da constatação da técnica ficcional estilhaçado. Entretanto, o sujeito, com toda essa vanguardista do romance e depois seguem uma orientação complicação, não falará apenas de si mesmo, de suas pró- de análise que, de certa forma, engessa a compreensão da prias agruras, voltado para si mesmo com um fetiche, mas obra. No caso de Carlos Nelson, a responsável por essa rigi- dará privilégio à revelação do mundo que o condenou ao dez seria aquela matriz Lukacsiana de que já falamos atrás.
emparedamento. Por isso, para Carlos Nelson, Graciliano E, no caso de Lucia Helena Carvalho, seria “o mergulho quase cego” numa rede teórica freudo-desconstrutivista. Os Rev. de Letras - N0. 28 - Vol. 1/2 - jan/dez. 2006 dois ensaios, de orientação praticamente antagônica, con- e num contexto literário em que o neo-realismo pre- cluem pelo progressismo e avanço do romance de Graciliano.
dominava, a utilização deste processo formal de com- Carlos Nelson, pela crítica à sociedade alienada e reificada, posição, em Angústia, nos coloca um quadro novo ecomplexo de problemas. (GIL, 1999, p. 71) e Lucia Carvalho, pela transgressão da lógica e da imagemcartesiana de sujeito.
Em vista disso, o ensaio de Fernando Gil propõe-se Feita essa configuração de algumas linhas da crítica buscar a especificidade histórica do uso das técnicas de Angústia, Fernando Gil tentará propor uma explicação vanguardistas européias por Graciliano Ramos, ou seja, que das questões já sugeridas, a partir das teorizações acerca da significado elas assumem no contexto da literatura e da re- crise do romance como gênero, no início do século XX. O presentação de indivíduo e sociedade no Brasil.
ensaio tenta compreender o romance de Graciliano, portan- É preciso acrescentar que as teorias de Adorno, filó- to, no contexto dos problemas que envolveram escritores sofo e crítico ligado à Escola de Frankfurt, em que o ensaio de Fernando Gil se apóia, procuraram exatamente tentar Uma nota aqui é necessária: embora realmente os compreender a relação entre as novas formas de vida decor- estudos sobre Angústia tendam a privilegiar uma perspecti- rentes da industrialização e organização administrativa, as va ou outra, psicológica ou sociológica, pelo menos nos mudanças na visão de indivíduo e sujeito e as novas formas mais aprofundados, podemos lembrar do ensaio Graciliano de arte e cultura que se apresentaram no início do século Ramos e o romance trágico (1978), de Sônia Brayner, que reconhece, embora não aprofunde, a impossibilidade de Tomando de Adorno a visão de “momento anti-rea- dissociar as situações psicológica e social, que estariam na lista do novo romance” (ADORNO, 1983, p. 270) e de base semântica e formal das soluções estéticas de Graciliano Anatol Rosenfeld a idéia de “desrealização” (ROSENFELD, Ramos. Embora seu assunto seja outro, o problema da tra- 1996, p. 76), conceitos com os quais os dois teóricos procu- gédia, a autora também acredita como Fernando Gil, que raram explicar as mudanças significativas no romance do ali comparecem dois problemas cruciais para o romance do século XX, Fernando Gil investiga o que, no caso de século XX: a dissolução do corpus social e a fragmentação Graciliano, teria levado à dissolução da forma do romance realista e ao processo de subjetivização, que implicam tam- Para Fernando Gil, portanto, Angústia se relaciona bém mudança histórica na forma do romance.
com o paradoxo do romance moderno, apontado por O ensaio de Fernando Gil entende que o principal Theodor W. Adorno, que consistia na impossibilidade de conflito do romance dá-se pela convivência de tempos his- continuar simplesmente contando histórias, reproduzindo tóricos diferentes, com valores também diversos, que for- a fachada de um mundo em dissolução. “Não se pode mais mam, no plano estético, a vida da personagem, mas são tam- narrar, ao passo que o romance exige a narração”, diz Ador- no (1983, p. 269). Como vimos, anteriormente, é consen- Com base nisso, uma das conclusões da análise é a so entre os críticos a ruptura em Angústia com a narrativa de que o processo de dissolução do sujeito e da narrativa tradicional, com o encadeamento temporal lógico, com uma terá, no Brasil, razões diferentes do ocorrido na Europa. Lá, visão clara de si e do mundo, o que leva ao estilhaçamento o processo de subjetivização e estilhaçamento da experiên- cia individual decorre de “uma tensão histórica estabelecida Na base da ruptura, estaria uma subjetivização do já na interioridade da própria sociedade capitalista industri- discurso ficcional, operacionalizado na narrativa principal- al e tecnológica em aceleração e transformação” (GIL, 1999, mente através da técnica do monólogo interior. O p. 74), enquanto que no Brasil teria derivado de tensões entre vanguardismo de Angústia costumava ser aferido, como vi- tempos históricos e formações sociais distintos, que não se mos, pelo uso dessa técnica. Mas Fernando Gil chama a aten- Este impasse provoca, no caso de Angústia, uma pa- ralisia narrativa, estruturalmente fundada na constante Na altura da publicação do livro, 1936, o recurso do irrupção do passado no presente. A tensão irresolvida, a monólogo interior já se encontrava bastante utiliza-do e difundido na literatura ocidental. Proust, Joyce paralisia do tempo, a fragmentação até do corpo (Luís mui- e Woolf, para citar apenas alguns dos escritores que tas vezes só consegue enxergar nas pessoas algumas par- fizeram uso desse recurso, já o haviam levado às últi- tes), indicam que a continuidade e, portanto, uma perspec- mas conseqüências como procedimento narrativo. Em tiva de identidade está fora de alcance. Aliás, a paralisia em face da literatura européia e mesmo norte-america- todos os planos cristaliza a visão do romance de uma impo- na, se formos considerar como dado positivo, por si, o caráter experimental de Angústia, veremos que se Fernando Gil avalia o assassinato de Julião Tavares trata, mais uma vez, de uma “vanguarda” retardatá-ria, com pouco valor de inovação estético-formal. En- como o paroxismo dessa impotência. Só na onipotência tretanto, no quadro rarefeito da literatura brasileira, destrutiva é que Luís consegue ver-se como homem. Mas Rev. de Letras - N0. 28 - Vol. 1/2 - jan/dez. 2006 falha também porque a identificação perfeita com o passa- um passado marcante, profundamente arraigado na sua for- do, consumada na sua incorporação momentânea do canga- mação, valores da cultura nordestina, embora ele também ceiro José Bahia, não pode durar e desfaz-se, evidenciando seja um jornalista, um homem intelectualizado, capaz de ainda mais o sujeito partido. Relacionando esse gesto de questionar todo esse complexo cultural. Ele se agarra a esse indivíduo impotente com o contexto brasileiro, Fernando passado para não ser eliminado pela cidade e seus valores, para não perder o peso, o que termina sendo inútil, comovimos. (OLIVEIRA, 2004, p. 79) Porque a experiência da Passado rural e presente urbano conjugam-se na úni- cidade, para os dois, Isaías e Luís da Silva, será de apaga- ca identidade possível que enforma os dois espaços brasileiros distintos: a atitude do arbítrio e da bruta- Pensando assim, o ensaio de Antonio Candido, que lidade destrutiva. Somente na atitude destrutiva, no vê em angústia uma investigação da personalidade, do ho- prazer na morte, é que Luís consegue atar as duaspontas de sua vida. Só que o resultado não é o mem primitivo irrompendo sob o fino verniz do civiliza- desaprisionamento da consciência em face ao passa- do, abordando essa tensão de um ângulo psicológico ge- do rural nem o seu desemparedamento em face ao ral, talvez pudesse ser acrescentado de certos matizes presente urbano, mas a retomada de todas as coisas sociais e culturais específicos. O primitivo que irrompe em seu ponto inicial, numa circularidade temporal- em Luís da Silva não é de maneira alguma uma força narrativa que demonstra nada ter saído do lugar des- destrutiva inespecífica, mas uma forma de violência de o começo, nem linguagem, nem sujeito, nem obje- inserida numa ordem, no caso a agrária e patriarcal, que atribui à capacidade de impor-se pela violência, de vingar A fortuna crítica da obra de Graciliano é bastante a ofensa com a morte, valores positivos de afirmação, vasta. Nem de perto fiz aqui uma revisão abrangente. Mas como a respeitabilidade, a coragem e a virilidade. O orgu- acho que se pode ter uma idéia de como o romance Angús- lho que se encontra em Luís da Silva não é de maneira tia vem sendo lido e interpretado desde que apareceu, há nenhuma a altivez acanhada de Isaías. É o orgulho de quem setenta anos. Nós podemos falar, com certeza, de algumas se formou na cultura do mando e da força afirmada pela visões críticas que se consolidaram: a de romance formal- violência, na sociedade patriarcal nordestina. Por isso, seu mente vanguardista, mesmo considerando a ressalva de orgulho é profundo o suficiente para levar ao crime. Só Fernando Gil, de que naquela altura, considerando o con- nos romances do século XIX europeu pode-se encontrar texto mundial, seria uma vanguarda retardatária; a de ro- esse orgulho tão retesado, capaz de provocar conseqüên- mance crítico às estruturas sociais brasileiras, inserido na cias desastrosas. Esse é um dos motivos pelos quais An- crise entre as instituições e valores do patriarcado rural e as gústia faz lembrar Dostoiévski. Com isso, quero dizer que formas de urbanas e burguesas, que começavam a pressio- não é uma violência primitiva, no sentido de irrupção pri- nar; a de romance crítico à constituição do sujeito e à situa- mária ou desordenada, mas ação cercada de valores e ção do indivíduo, permeado pelas desconfianças lançadas especificação histórica e social.
no século XX a configurações identitárias estáveis ou, de Em relação ao ensaio de Fernando Gil, as questões qualquer forma, seguras de si mesmas.
ali formuladas são certamente de grande interesse, porque Para finalizar, gostaria de expor rapidamente minha reconhecem as peculiaridades e os impasses históricos da própria posição no debate sobre Angústia, relacionada a outro literatura brasileira e demonstram a desenvoltura do ensaísta autor brasileiro, que venho estudando nos últimos dez anos.
diante do aparato teórico de base, no caso, a Escola de Frank- Na análise que fiz do romance Recordações do escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto, inseri, de maneira com- A análise empreendida é muito bem fundamentada, parativa e para fins explicativos, um breve comentário críti- mas gostaria de expor uma discordância na explicação do processo de subjetivização do romance, de dissolução da O ponto de partida são as semelhanças do protago- forma narrativa tradicional, que o autor atribui à coexistên- nista de Lima Barreto com Luís da Silva. Isaías também cia de duas temporalidades históricas, com culturas e valo- vem do interior para a cidade, ali é humilhado e passa fome res inconciliáveis. Na minha visão, o processo de fragmen- até conseguir trabalho como jornalista. Mas, no romance do tação e estilhaçamento da identidade é motivado pela forma autor carioca, a derrota do herói é quase sumária, tão rápida de vida na cidade, pela solidão, ausência de elos, abismos que a luta interior, que existe, perde o relevo. Isaías torna-se entre grupos e classes, que empurram o indivíduo para uma uma palha no rodamoinho, sem peso ou liames importantes, espécie de existência avulsa, como avulso é o dinheiro. No e traça uma trajetória errante, sem possibilidade de auto- romance de Lima Barreto, essa nova condição do indivíduo No caso de Luís, a derrota é sofrida, dramática, tor- Claro que a divisão entre as duas formações, rural e turada, crescendo até o trágico. Onde está a diferença? Na urbana, é um fator a mais de estilhaçamento, mas é sobretu- minha interpretação, a diferença de Luís está na presença de do, no livro, um fator de conflito. Com isso, quero dizer que Rev. de Letras - N0. 28 - Vol. 1/2 - jan/dez. 2006 a fragmentação nem sempre é conflitiva, no sentido do dra- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ma ou da tragédia, como em Angústia. A fragmentação eestilhaçamento modernos são mais fatores de trivialização ADORNO, Theodor W. Posição do narrador no romance da vida, do que de drama. Elas são exatamente a perda da contemporâneo. Tradução de Modesto Carone. In: Textos possibilidade de drama, que só pode existir no conflito en- escolhidos: W. Benjamin, M. Horkheimer, J. Habermas e T. tre pessoas. Osman Lins percebe isso nos romances de Lima W. Adorno. 2a. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 269- Barreto. Ali se trata de uma solidão profunda, no sentido já do século XX, da impossibilidade de comunicação, por isso BRAYNER, Sônia. Graciliano Ramos e o romance trágico.
em narrativas importantes do autor quase não há drama.
In: BRAYNER, Sônia (org.). Graciliano Ramos. 2a. ed. Rio (LINS, 1976, p. 34-35 e 51) Refiro-me aqui principalmente de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p. 204-217. (Cole- às Recordações e ao Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá, que são os romances de Lima mais voltados para a vida doindivíduo na cidade.
CANDIDO, Antonio. Ficção e confissão: ensaios sobre Luís mata por ciúme, para impor-se, para existir como Graciliano Ramos. 3a. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, homem, portanto para não ser reduzido à completa insigni- ficância, embora reconheça depois que sua vida não mu- CARVALHO, Lúcia Helena. A ponta do novelo: uma inter- dou, permanece na mesma inutilidade (“monótona, agarra- pretação de Angústia, de Graciliano Ramos. São Paulo: da à banca das nove horas ao meio dia, e das duas às cinco”, estúpida, sem valor e substituível.) É assim que ele continua COUTINHO, Carlos Nelson. Graciliano Ramos. In: vivendo, mesmo tendo morto Julião Tavares. As mãos não BRAYNER, Sônia (org.). Graciliano Ramos. 2a. ed. Rio de se mostram mais vigorosas por isso, são mãos de velho, fra- Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p. 73-122. (Coleção Para mim, é essa maneira de viver, regular, vazia e GIL, Fernando Cerizara. Angústia: dissolução, substituível, que estilhaça qualquer possibilidade de proje- emparedamento e circularidade. In: O romance da urbani- ção contínua e digna da identidade, subtrai a capacidade de zação. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999, p. 63-87.
dar sentido à própria vida e ao mundo em redor e força anarrativa a procurar formas de representação complexas, LINS, Osman. Lima Barreto e o espaço romanesco. São capazes ainda de expressar com seriedade e teor humano o cotidiano trivializado. Sem isso, a história de Luís da Silva OLIVEIRA, Irenísia Torres de. Uma palha na cidade. In: perderia todo o relevo e seria reduzida ao clichê do homem Revista Letras. Curitiba: Editora UFPR, n. 64, set./dez.2004, ofendido que mata por ciúme. Os motivos profundos que podemos investigar dependem, portanto, de intervenções na RAMOS, Graciliano. Angústia. São Paulo: Círculo do Li- forma (estilhaçamento, retomadas, circularidade, deforma- ções) que sedimentam de maneira profunda a experiência ________. Memórias do cárcere. 25a. ed. Rio de Janeiro/ ROSENFELD, Anatol. Reflexões sobre o romance moder-no. In: Texto/Contexto I. 5a. ed. São Paulo: Rev. de Letras - N0. 28 - Vol. 1/2 - jan/dez. 2006

Source: http://www.revistadeletras.ufc.br/rl28Art23.pdf

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