Abordagem diagnóstica e terapêutica de dispepsia pelo Médico de Família e Comunidade Autoria: Erno Harzheim Airton Tetelbom Stein Supervisão: Eno Dias de Castro Filho CONFLITO DE INTERESSE: Nenhum conflito de interesse declarado. Problema clínico: paciente adulto com queixa de dispepsia, sem investigação prévia,
busca ambulatório de atenção primária para resolução dos sintomas. Qual abordagem
diagnóstica e/ou terapêutica inicial mais adequada?
Esta diretriz refere-se à abordagem de dispepsia não-investigada, sem realização prévia
de endoscopia digestiva alta. Portanto, não serão encontradas recomendações para
doenças específicas como úlcera péptica, doença do refluxo gastresofágico ou outras.
Método de coleta e evidências: Foram consultadas as bases de dados do Medline,
através do Pubmed. A estratégia de busca foi baseada em perguntas estruturadas na
forma de PICO (Paciente, Intervenção, Controle, Outcome) e utilizados termos MESH.
Duas sintaxes de busca diferentes foram utilizadas. A primeira sintaxe de busca foi
(“Dyspepsia” AND “Diagnosis” AND “Therapy”), com os seguintes limites: All Adult: 19+ years, English, Spanish, Portuguese, Meta-Analysis, Randomized Controlled Trial, Humans. Foram encontrados210 artigos. Desses, pelo abstract, foram selecionados 33
artigos. A segunda sintaxe de busca utilizada foi “Dyspepsia AND Diagnosis AND Therapy AND Primary Health Care”, sem utilização de limites. Foram encontrados 34
artigos, dos quais 28 foram selecionados através do abstract. Todos os artigos
selecionados foram avaliados em relação a sua força de evidência pela classificação de
Oxford Centre for Evidence Based Medicine. Também foi utilizada a base de dados da
Cochrane de Revisões Sistemáticas (4 revisões encontradas e selecionadas) e, também,
a base Cochrane de Revisões sobre Efetividade (1 revisão selecionada) através do BVS,
utilizando-se o termo “dispepsia” como sintaxe de busca. Além disso, consultou-se o
National Guideline Clearinghouse, através do site www.guidelines.gov, do qual foram
selecionadas 5 diretrizes clínicas através do termo de busca “dyspepsia”. Por fim, foram
definidos 36 artigos que pela sua maior força de evidência científica, consistência e
relevância clínica embasaram as recomendações dessa diretriz. Não houve conflitos de
interesse. Público alvo: Médicos de Família e Comunidade.
Critérios de inclusão de artigos:
Pacientes adultos ou idosos, com queixa clínica de dispepsia avaliados em atenção
primária à saúde. Artigos com validade intrínseca e com potencial validade extrínseca
Grau de Recomendação e força de evidência (Projeto Diretrizes AMB/CFM):
D: Opinião desprovida de avaliação crítica, baseada em consensos, estudos fisiológicos
Definição
A dispepsia é uma síndrome clínica caracterizada pela presença persistente e/ou
recorrente de dor ou desconforto epigástrico, com ou sem a presença dos seguintes
sintomas: má digestão, pirose, regurgitação, náusea, vômitos, saciedade precoce,
eructação excessiva e sensação de digestão lenta. Esses sintomas não podem ser
relacionados ao uso de antiinflamatórios não-esteróides (AINEs). Caso os sintomas
predominantes sejam pirose e regurgitação, abordar como doença do refluxo
gastresofágico. Já a dispepsia não-ulcerosa é definida pelos sintomas citados acima, mas
após a exclusão de doença estrutural (esofagite, úlcera péptica) através da realização de
endoscopia digestiva alta ou raio-X contrastado.
Epidemiologia
Estudo de base populacional realizado na cidade de Pelotas identificou uma prevalência
de dispepsia de 44% na população adulta maior de 20 anos 1. Dispepsia é uma queixa
clínica freqüente em serviços de atenção primária à saúde. No diagnóstico de demanda
de 1999 do Serviço de Saúde Comunitária do Hospital Nossa Senhora da Conceição, os
motivos de consulta classificados dentro do grupo do sistema digestivo, incluindo
dispepsia, corresponderam a 13% do total, representando o 3° grupo mais freqüente 2. A
prevalência de Helicobacter pylori em grandes centros urbanos brasileiros fica em torno
de 62 e 81% 5,6,7,8. Entretanto, o papel etiológico da infecção por Helicobacter pylori na
dispepsia não-ulcerosa ainda não está claro. Por outro lado, as estratégias de tratamento
de dispepsia não-investigada dirigidas à infecção por Helicobacter tem potencial
efetividade por tratarem, empiricamente, uma parcela de pacientes que, à endoscopia, se
mostrariam portadores de doenças pépticas relacionadas à infecção (ex: úlcera péptica
Avaliação diagnóstica
Frente a um paciente com queixa clínica de dispepsia não-investigada é importante a
identificação de sinais de alarme indicativos de doença orgânica grave, como úlcera
Os principais sinais / sintomas de alarme são:
- sangramento gastrointestinal agudo / crônico (melena / hematêmese)
- perda de peso involuntária progressiva
- história familiar de Câncer de Gástrico
Da mesma forma, é importante identificar o uso de medicamentos que possam ser
responsáveis pelos sintomas dispépticos. Os principais medicamentos relacionados são
AINEs, antagonista do cálcio, nitratos, teofilina, bifosfonados, corticoesteróides.
Avaliações diagnósticas citadas nesta diretriz
EDA: é o método de escolha para o diagnóstico definitivo das causas orgânicas de
dispepsia. Entretanto, menos de 40% dos pacientes com dispepsia apresentam doença
orgânica detectável. Permite o diagnóstico precoce do câncer gástrico em pacientes de
Teste respiratório com uréia marcada para detecção da infecção pelo Helicobacter pylori: identifica a infecção ativa pelo Helicobacter pylori a partir da produção de
urease pelo microorganismo. O paciente ingere uréia marcada com isótopo de carbono
13 (não-radioativo) ou 14 (radioativo) e, na presença da bactéria no estômago, ocorre a
produção de dióxido de carbono marcado, que pode ser detectado rapidamente na
respiração do paciente. A sensibilidade do método varia de 95-100% e a especificidade
de 91-98%, porém é um exame de alto custo 8,11,12.
Sorologia para detecção da infecção pelo Helicobacter pylori: detecta a presença de
anticorpos IgG séricos específicos para Helicobacter pylori. Esses anticorpos estão
presentes no sangue cerca de 21 dias após a infecção e podem permanecer por longo
tempo, mesmo após a erradicação da bactéria. O método tem sensibilidade de 85% e
especificidade de 79%, é de baixo custo e proporciona resultados rápidos, mas não está
amplamente disponível em nosso meio. Além disso, não diferencia infecção ativa de
1 – Está indicado realizar endoscopia digestiva alta (EDA) como abordagem inicial de pacientes adultos com dispepsia?
A EDA está indicada na abordagem inicial de pacientes com dispepsia não-investigada
na presença de um ou mais dos sintomas de alarme citados anteriormente 13,14,15,16,17.
(D). Dentre estes sintomas, a presença de disfagia ou perda de peso significativa são os
mais importantes para a suspeita de presença de câncer gástrico, devendo-se obter EDA
com urgência 13. Mas, apenas 10% dos pacientes com dispepsia em atenção primária
terão presença de um ou mais sinais de alarme 18. A EDA também está indicada em
pacientes com dispepsia de início recente e idade > 55 anos 13,14,15,16,17 pelo risco
aumentado de câncer gástrico. (D) Mesmo assim, alguns estudos demonstraram que a
endoscopia digestiva alta não é a alternativa inicial mais custo-efetiva para esses
pacientes, porém é a estratégia que detecta mais precocemente a maioria dos cânceres
gástricos 8. Pacientes encaminhados à EDA devem ficar 2 semanas sem receber
inibidores da bomba de prótons e/ou antagonistas H2 previamente ao exame para evitar
dificuldades na identificação de câncer de esôfago e/ou estômago 13 (D).
Em pacientes < 55 anos a abordagem inicial da dispepsia não-investigada ainda é
controversa. Os resultados de diversos ensaios clínicos 8,9,19,20,21,22,23, de revisões
sistemáticas e meta-análises 10,24,25 e de estudos de análise de decisão 26 são
contraditórios quanto à efetividade (melhora dos sintomas dispépticos em, no máximo,
12 meses) das 3 principais abordagens testadas: supressão ácida (inibidores da bomba
de prótons), teste para presença de infecção por Helicobacter pylori e posterior
tratamento dos casos positivos (“test-and-treat”) ou endoscopia digestiva alta com
posterior tratamento das afecções diagnosticadas no procedimento. Entretanto, os
estudos são concordantes quanto à menor custo-efetividade da endoscopia quando
comparada à supressão ácida ou à abordagem “test-and-treat”, estratégias que reduzem
a necessidade de endoscopia e de uso de drogas anti-secretoras. Resumidamente, em
pacientes com idade inferior a 55 anos, apesar de alguns estudos terem excluído
indivíduos acima de 45 26,27,28,12, a abordagem inicial com endoscopia não parece ser a
melhor opção. Além disso, conforme revisão sistemática bastante consistente que
incluiu muitos dos estudos previamente referidos, comparando as 3 abordagens
principais, supressão ácida, endoscopia ou “test-and-treat”, a realização de endoscopia
no manejo inicial de dispepsia não-investigada não tem efetividade clínica superior à
supressão ácida, mas é ligeiramente mais efetiva que testar e tratar para o Helicobacter pylori. Adicionalmente, esta revisão confirmou que a endoscopia não é custo-efetiva
quando comparada às duas opções anteriores, principalmente em pacientes com menos
de 45 anos 29. (A) A diretriz 16 do National Institute for Clinical Excellence, do Reino
Unido, corrobora esta recomendação ao mostrar que os sintomas de dispepsia,
isoladamente ou agrupados, tem baixo poder preditivo para auxiliar na triagem de
pacientes que se beneficiariam de endoscopia a fim de detectar a presença de úlcera
2 - Qual a melhor forma de abordagem inicial de pacientes adultos com dispepsia sem sinais de alarme: tratamento empírico com antagonistas H2 ou inibidores da bomba de prótons ou através da estratégia de “test-and-treat” para infecção por Helicobacter pylori?
Primeiramente, é importante excluir a possibilidade de doenças cardíacas ou biliares
como causa dos sintomas de dispepsia 13. (D) Em segundo lugar, antes de escolher uma
das formas de tratamento acima citadas, é indispensável o aconselhamento do paciente e
a identificação e suspensão, quando possível, de medicamentos de uso habitual que
possam ser responsáveis pelos sintomas dispépticos (AINEs, antagonista do cálcio,
nitratos, teofilina, bifosfonados, corticoesteróides)13. (D). O aconselhamento inclui
alimentação saudável, redução de peso e suspensão de tabagismo para todos pacientes.
Orientar o paciente para evitar outros hábitos (uso de álcool, café, chocolate ou outros)
que ele mesmo atribui fator precipitante da dispepsia pode promover resultados
positivos. Além disso, é também importante informar e esclarecer o paciente quanto à
grande probabilidade da origem benigna dos sintomas dispépticos na ausência de sinais
de alarme e/ou de idade inferior a 55 anos 13. (D)
Atualmente, a melhor abordagem inicial em termos de efetividade e custo-efetividade
de pacientes com dispepsia é realizar supressão ácida com o uso de inibidores da bomba
de prótons 29,30. (A) Ensaios clínicos recentes vêm mostrando efetividade e, em alguns
estudos, custo-efetividade superior da abordagem “test-and-treat” sobre o uso de
inibidores da bomba de prótons ou endoscopia como abordagem inicial 31,32,33, mas a
revisão sistemática que incluiu estes estudos 29, não confirmou estes resultados. Além
disso, muitos destes estudos não foram realizados no contexto da atenção primária, o
que traz alguma incerteza quanto à efetividade superior da opção “test-and-treat” sobre
a supressão ácida em APS. Além disso, os testes para detecção da infecção pelo
Helicobacter pylori (teste respiratório com uréia marcada e sorologia) são pouco
Quanto às diferentes formas de se obter supressão ácida, os inibidores da bomba de
prótons se mostraram superiores aos antagonistas H2 29,34. (A) Os inibidores também
têm efetividade superior aos antiácidos 29,34. (A) Drogas pró-cinéticas apresentaram
resultados similares às anti-secretoras em uma das revisões sistemáticas referidas 34,
mas não foi possível excluir viés de publicação ou outros problemas metodológicos
nestes estudos. Assim, mais estudos são necessários para avaliar se há indicação do uso
de pró-cinéticos para pacientes com dispepsia não-investigada.
3 – Qual a melhor abordagem para pacientes com dispepsia não- investigada e sem sinais de alarme que apresentam recorrência dos sintomas após uso de IBP por 4-6 semanas?
Se após 4-6 semanas de uso de inibidores da bomba de prótons não houve melhora dos
sintomas dispépticos é chegada a hora de partir para a estratégia “test-and-treat” para
Helicobacter pylori. Esta decisão é embasada por diversos estudos que demonstraram
maior relação custo-efetividade da abordagem "test-and-treat” sobre a endoscopia
31,32,33,35. (A) Além disso, revisão sistemática incluindo pacientes com dispepsia não-
ulcerosa, definida através de endoscopia ou raio-x contrastado, e presença inequívoca de
Helicobacter pylori, comparou a efetividade de tratamentos efetivos para Helicobacter pylori (uso de antibióticos + inibidores da bomba de prótons) contra placebo ou outras
drogas para dispepsia que não eliminam a bactéria, demonstrando redução dos sintomas
dispépticos no grupo tratado para a infecção pelo Helicobacter 36. (A)
Assim, devido à evidência de superioridade na relação de custo-efetividade entre a
opção “test-and-treat” sobre a endoscopia, esta deveria ser a estratégia de escolha neste
momento. Entretanto, as duas melhores formas de detecção do Helicobacter pylori estão
pouco disponíveis em nosso meio (teste respiratório com uréia marcada e sorologia).
Por outro lado, aplicando um raciocínio clínico-epidemiológico é possível resolver este
impasse. Em países desenvolvidos, a prevalência de infecção por Helicobacter pylori
em pacientes com dispepsia, onde todos os estudos citados foram realizados, está em
torno de 30%, enquanto a prevalência de infecção em pacientes dispépticos de países
em desenvolvimento é de 80 a 90%. Se calcularmos a razão de verossimilhança de
ambos testes teremos uma razão de 4,25 para a sorologia e de 10,6 para o teste
respiratório. Aplicando a prevalência conhecida de Helicobacter pylori para países
desenvolvidos (30%) como a probabilidade pré-teste de infecção é possível calcularmos
a probabilidade pós-teste nestes países quando o resultado destes testes for positivo. A
probabilidade pós-teste da sorologia positiva em países desenvolvidos seria de 70%,
enquanto a do teste respiratório seria de aproximadamente 80% 37. Como nossa
probabilidade pré-teste é superior a estes valores e não temos a disponibilidade dos
exames, podemos tratar diretamente o Helicobacter pylori como 2º passo no manejo de
pacientes dispépticos não investigados, sem realização dos testes. Isto acarretará,
probabilisticamente, a exposição a antibióticos desnecessários em 1 de cada 5 pacientes
tratados. Por outro lado, reduziremos a necessidade de endoscopias, procedimento não
isento de riscos, com economia de recursos financeiros, maior conforto do paciente e
aumento da resolutividade no nível primário.
Se após o tratamento com esquema medicamentoso adequado para Helicobacter pylori
houver recorrência dos sintomas dentro de um prazo de 12 meses de seguimento, estará
indicada a realização de endoscopia digestiva alta para descartar uma possível causa
estrutural para os sintomas referidos pelos pacientes 13,14,15,17. (A) Principais Recomendações
Na abordagem inicial de pacientes com dispepsia você deve (ver fluxograma):
1- Encaminhar pacientes para endoscopia digestiva alta se presença de sinais de
alarme (sangramento gastrointestinal agudo / crônico, perda de peso
involuntária, disfagia, vômitos persistentes, anemia por deficiência de ferro,
massa epigástrica, doença péptica ulcerosa prévia, história familiar de Ca
Gástrico) e/ou idade > 55 anos. (D)
2- Aconselhar o paciente a seguir uma alimentação saudável, reduzir o peso e
suspender o fumo. (D)
3- Identificar e suspender, se possível, medicamentos de uso habitual que possam
provocar sintomas dispépticos (AINEs, antagonista do cálcio, nitratos, teofilina,
bifosfonados, corticoesteróides). (D)
4- Tratar por 4-6 semanas com inibidor da bomba de prótons. (A)
5- Tratar empiricamente a infecção por Helicobacter pylori se não houver melhora
ou houver recorrência dos sintomas em 12 meses após 4-6 semanas de uso de
inibidores da bomba de prótons. (A)
6- Encaminhar paciente para endoscopia digestiva alta se não houver melhora ou
recorrência dos sintomas em 12 meses após tratamento para infecção porHelicobacter pylori. (A) Algoritmo: Abordagem diagnóstica e terapêutica de dispepsia não-investigada (vide Referências
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