O TRABALHO E A SAÚDE NA CULTURA CONTEMPORÂNEA
Apresentarei, de início, uma oposição entre o Direito e a Psicanálise. O
pensamento jurídico é permeado por uma pergunta: O que leva um homem atornar-se antissocial? As formalizações psicanalíticas, por sua vez, também sãoinstigadas por uma pergunta, que, entretanto, é o inverso da primeira: O que levaum homem a tornar-se social? A diferença é eloquente. Revela-nos que as duasdisciplinas têm pontos de partida diversos. Para o Direito o homem é, em princípio,um ser social. A Psicanálise, pelo contrário, não considera que o homem seja,em princípio, um ser social. Vou deter-me nesse aspecto.
Freud despreza qualquer separação entre o conceito de cultura e o de
civilização, e afirma que ela designa a soma das produções e instituições quedistinguem claramente nossa vida da de nossos antecessores animais. Entre assuas finalidades, duas se destacam: dominar a Natureza, extraindo dela os benspara satisfazer as necessidades humanas, e regular as relações dos homens entresi, especialmente no que se refere à distribuição dos bens conseguidos. Ao longoda história, o objetivo de dominar a Natureza tem alcançado êxitos inegáveis, mas,às expensas de elevado preço. A questão é que a cultura repousa na imposiçãocoercitiva do trabalho e na renúncia à satisfação das pulsões (sexuais e destrutivas),sacrifícios que cada homem experimenta como peso intolerável, e que faz dele,virtualmente, um inimigo da civilização. A imposição é inevitável, devido a duascaracterísticas amplamente difundidas entre os homens: a falta de amor ao trabalhoe a ineficácia dos argumentos contra as paixões. Ou seja, as massas não aceitamespontaneamente os esforços e privações imprescindíveis à perduração da cultura. Justifica-se, assim, a impressão de que a civilização é algo que foi imposto a umamaioria contrária a ela por uma minoria que soube se apoderar dos meios de podere coerção.1
Além das restrições dirigidas a todos os componentes da cultura, existem
outras, que somente atingem determinadas classes sociais. Está aí novo foco derevolta: quando a satisfação de certo número de seus participantes tem como premissaa opressão da maioria - e assim ocorre em todas as civilizações atuais -, écompreensível que os oprimidos desenvolvam intensa hostilidade contra acivilização que eles mesmos mantêm com seu trabalho, mas de cujos bens nãodesfrutam senão em pequena proporção. É uma hostilidade tão patente que temimpedido os observadores de ver aquela que veladamente existe também nasclasses mais favorecidas.2
* Psiquiatra e psicanalista, A.M.E. da Escola Brasileira de Psicanálise. 1
FREUD, S. (1968) El porvenir de una ilusión (1927) (p. 73-74). In: Obras completas. Vol. II,Madrid: Editorial Biblioteca Nueva.
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Em que pese o tributo que se paga à civilização, aspirar à sua supressão
seria, no entanto, prova de profunda ingratidão e acentuada miopia. Sem ela, oque resta é a lei do mais forte, em detrimento do Direito. O primeiro requisito culturalé o da justiça, a segurança de que a ordem jurídica não será violada a favor de umindivíduo.3
Para Freud, em suma, todos os homens carregam tendências destrutivas -
antissociais e anticulturais - de tal modo que, para a psicanálise, o problema a seresclarecido é como chegam a se tornar sociais. Formulando em outras palavras,trata-se de saber que defesas a civilização utiliza, ou seja, que meios de coerçãoela dispõe e que meios procuram reconciliá-la com seus componentes,compensando-lhes seus sacrifícios.
Uma das mais preciosas conquistas da cultura foi a gradual transformação
da coerção por agentes externos em coerção por um agente interno, o supereu. Aolongo da história da humanidade, e de cada um em particular, os mandamentosculturais - inicialmente impostos como exigências de outros - tornam-seinteriorizados, convertendo-se em exigências de uma instância psíquica do própriosujeito. O supereu é o representante da lei paterna, que sela a renúncia à satisfaçãopulsional. Enquanto autoridade interior, onipresente, não faz diferença entre desejoe agressividade simplesmente intencionados e efetivamente realizados. Ou seja,tanto a intenção como o ato são responsáveis por sentimento de culpa, vividocomo mal-estar inexplicado. O mal-estar na civilização, por conseguinte, é a perdade felicidade por aumento da culpabilidade.4
Um segundo e poderoso fator, um dos que com maior êxito neutraliza a
hostilidade adversa, é a criação de ideais culturais. Todos os elementos de umadeterminada cultura ou unidade cultural saem beneficiados. Mesmo os maisoprimidos são compensados pela satisfação narcísica de poder depreciar os quenão pertencem à sua cultura. Caio é um mísero plebeu sufocado pelos tributos,mas também é um romano, e participa da grande tarefa de dominar outras naçõese impor-lhes leis. Os oprimidos podem identificar-se com a classe que os oprime eexplora, podem sentir-se efetivamente ligados aos seus opressores e, apesar desua hostilidade, ver em seus senhores seu ideal. É esse o motivo pelo qual certascivilizações têm-se conservado por tanto tempo, malgrado a justificada revolta degrandes massas de homens.5
Defronta-se, a essa altura, com um terceiro fator, que constitui o elemento
mais importante do inventário psíquico de uma civilização: as suas representaçõesreligiosas. Trata-se de um acervo de convicções, cuja finalidade é proteger oshomens contra os perigos da natureza e do destino e contra os danos da própriavida em sociedade. Assim se identifica Deus a um pai todo-poderoso e onipresente,capaz de amenizar o insuportável sentimento de impotência e desamparo - legadoda infância de cada um e da infância da própria espécie humana. Historicamente,observa-se que, no início, os deuses colaboravam com os homens no que se refere
FREUD, S. (1968) El malestar en la cultura (1930) (p. 25). In: Obras completas. Vol. III,Madrid: Editorial Biblioteca Nueva.
FREUD, S. (1968) El porvenir de uma ilusión. Op. cit., p. 77.
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ao controle das forças da natureza. Houve, com o tempo, um deslocamento daênfase. A principal tarefa divina passou a ser o nivelamento dos males da civilização;o cuidado dos padecimentos que os homens infligem uns aos outros e a fiscalizaçãodo cumprimento dos preceitos culturais, a que os homens obedecem de modo tãoimperfeito. Os preceitos foram apresentados como de autoria do próprio Deus eobtidos graças à revelação.
Para Freud, a religião ajuda o homem, mas do mesmo modo que o faz a
neurose. Há mesmo grande semelhança entre elas. Ambas derivam-se dorelacionamento com o pai, e o cabedal de suas ideias inclui não apenas realizaçõesdisfarçadas de desejos como também importantes reminiscências históricas. Écomo se a neurose fosse uma religião individual, ou como se a religião fosse umaneurose obsessiva universal. A civilização teria dado um grande passo se, em vezde encarar os preceitos culturais como mandamentos divinos, reconhecessehonestamente sua origem puramente humana. Junto com sua pretensa santidade,eles perderiam também sua rigidez e imutabilidade. Em vez de sua abolição, seriaprocurado o seu aperfeiçoamento. Um grande avanço no caminho que leva àreconciliação com o fardo da cultura.6
Quando Freud propõe que os mandamentos culturais sejam reconhecidos
como de origem humana, para torná-los passíveis de flexibilização e aprimoramento,não há dúvida de que está atribuindo grande importância à ordem jurídica, queteria assim papel fundamental na conciliação do sujeito com a cultura. O fundadorda psicanálise descortina a perspectiva, mas não se encanta com ela. Mostra-secauteloso diante do grande obstáculo à civilização, que é a tendência constitucionaldos homens a agredir-se mutuamente. O cristianismo tenta mascarar a duraconstatação com o mandamento “Amarás a teu próximo como a ti mesmo”, ingênuoe irrealizável. Outro dado inquietante é a verificação de que a humanidade progrediutanto no domínio das forças elementares que se tornou capaz de destruir a siprópria e ao seu ambiente natural.
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Em que a cultura contemporânea é diferente daquela em que Freud viveu?Um primeiro aspecto a ser ressaltado é o declínio ou mesmo a dissolução
da moral sexual civilizada. Está diante de nossos olhos a decadência da interdição,isto é, a permissividade ou a tolerância social no que concerne à satisfação daspulsões. A emancipação das mulheres e a liberação dos costumes entraram tãodecisivamente no cotidiano de nossas vidas que fizeram mergulhar no passadoremoto as descrições freudianas sobre o recalque da sexualidade. Época em quecausava escândalo a simples afirmação da existência da sexualidade infantil. Jacques-Alain Miller propõe, de forma divertida, que, se aquela foi denominadaera vitoriana, a nossa poderia ser a era clintoniana.7
Um segundo aspecto por demais evidente é a queda dos ideais culturais. Época
de declínio do pai, do viril, dos valores, das hierarquias, das identificações verticais. De crise do saber, dos sistemas de ideias. No mundo globalizado, são golpeadas demorte as tradições que se passam de geração a geração, os ideais que cingem econcernem povos, nações ou regiões, os costumes ou ritos que caracterizam seitasou grupos. Caminha-se mais e mais para o standard, e as carências que eramaplacadas pelos ideais culturais passam a ser apaziguadas pelo gozo consumista. O consumo é a quinta-essência do mundo globalizado. Um bom paradigma seria aCoca-Cola, ou o Mc Donald’s. Gozo fácil, democratizado, universalizado.
Conforme foi dito, o supereu freudiano é uma instância que traz mal-estar
para o sujeito, mas que contribui para reforçar o cimento da cultura. Os ideaisculturais, da mesma forma, têm poderosa influência aglutinadora. Se entram emdeclínio, ou mesmo em queda livre, é preciso que outros meios sejam mobilizadospara a tarefa de conciliar o homem com a cultura. Com o enfraquecimento dainterdição e com a liberação dos costumes, não apenas as pulsões sexuais sãofranqueadas, como também, em boa parte, as destrutivas. Reduz-se a insatisfação,mas fica fortalecida a tendência antissocial.
Ora, se para Freud a civilização se assenta na imposição coercitiva do
trabalho e na renúncia à satisfação das pulsões, o que se verifica na atualidade éque apenas o primeiro item se mantém. Ou seja, o trabalho obrigatório continua avigorar em escala planetária, e constitui, talvez, nos dias de hoje, a maior fonte demal-estar na civilização. Que novos recursos a civilização utiliza, então, comoestratégia para se manter, ou como forma de compensação?
Não há dúvida de que a principal resposta é o gozo consumista, já
mencionado. Tem havido, em âmbito quase universal, um aumento da produtividadee uma democratização do acesso aos bens, em escala nunca antes vista. Todavia,embora as disparidades sociais tenham sido reduzidas, elas continuam grandes epodem converter-se em fator de dispersão.
Por seu turno, não devem passar despercebidos o renascimento e a reedição
do fervor religioso, cuja eficácia na conciliação do sujeito com a cultura é bastantereconhecida.
MILLER, J.-A. O sintoma e o cometa (p. 10). In: Opção lacaniana, n. 19. São Paulo:Edições Eólia, 5-13, agosto 1997.
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Um último aspecto deve ser ressaltado. Na época contemporânea, com a
decadência das instâncias subjetivas que limitavam as tendências sexuais e agressivas,a sua regulação passa a depender muito mais de um controle social, exterior aosujeito. Deve ser apontada, então, uma nova ênfase na ordem policial e jurídica,além de outros procedimentos que serão apenas citados: os meios de avaliação.
O TRABALHO E SUA RELAÇÃO COM A SAÚDE E A DOENÇA
O principal pilar da civilização atual, portanto, é a imposição coercitiva do
trabalho. Historicamente, a forma mais extrema de imposição é o trabalho escravo,cuja existência remonta aos primórdios da cultura. Ao longo dos últimos séculoshouve uma revolta contra esse tipo de opressão, que resultou na criação de umasérie de direitos do trabalhador, amparados por legislação específica. Serei breve. Não pretendo ensinar Pai Nosso para o vigário. Foi uma conquista tão expressiva,no sentido de aliviar o fardo imposto pela civilização, que algumas almas ingênuaschegaram a acreditar haver sido a escravidão varrida da face da Terra. Eis um ladoda questão.
Mas, como toda questão, existe outro lado, ou outros lados. Na oposição
sujeito versus civilização, os direitos trabalhistas, que foram feitos para proteger,podem ser usados como instrumento para manifestar a hostilidade do sujeito emrelação à cultura. Em outros termos, ele busca um meio de lançar mão do arcabouçolegal para expressar sua revolta em relação ao trabalho obrigatório. Em última análise,ele procura usufruir os benefícios da cultura, sem, entretanto, arcar com o ônus queela implica. Um modo bastante eficaz de realizar tal proeza é por meio da doença. Ao adoecer, o sujeito se livra do trabalho, sem renunciar ao bem-estar na civilização.
Lacan observa que nem sempre o que o paciente demanda do médico é a
cura. Às vezes, ele desafia o médico a retirá-lo de sua condição de enfermo - o queimplica estar ligado à ideia de conservá-la. Outras vezes, demanda explicitamentedo médico que o autentique como enfermo. Ou, ainda, que lhe preserve em suaenfermidade. Além do mais, não é necessário ser psicanalista, sequer médico,para saber que, quando alguém demanda algo, isso não é idêntico, e às vezes é
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inclusive diametralmente oposto àquilo que se deseja. Introduz-se, assim, a estruturada falha que existe entre aquilo que se demanda e aquilo que verdadeiramente sedeseja.8
Fica a pergunta instigadora: o que levaria o paciente a desafiar o médico a
retirá-lo de sua condição de enfermo, a querer conservá-la, ou a demandar que omédico a autentique? Pode ser estranho para alguns, mas, na verdade, éconstatação corriqueira. E há mais de uma resposta para a pergunta. A psicanáliseprioriza o exame das motivações inconscientes do fato, mas, aqui e agora, pretendocontinuar a abordar o tema na sua relação com o trabalho. Em outras palavras: serconsiderado enfermo como uma estratégia para evitar o trabalho.
Alguém poderia discordar: a doença, porém, tem um substrato anatômico e
fisiológico, que pode servir de base para uma definição precisa e isenta de segundasintenções. A afirmação precedente é verdadeira. Não obstante, como toda verdade,não é uma verdade absoluta, é uma meia-verdade. De fato, as doenças, no sentidoestritamente médico, têm uma inequívoca base anatômica e fisiológica: como é ocaso, por exemplo, do câncer, da cirrose hepática, da doença de Alzheimer, dodiabetes mellitus. O argumento, portanto, pelo menos em parte, é poderoso.
Antes de continuar, uma pequena digressão. A entrada na fase científica,
que ocorreu há menos de um século, produziu rápida mudança na medicina e nafunção do médico. Considerarei dois aspectos dessa transformação.
Em primeiro lugar: criou-se uma nova concepção de corpo, numa evolução
que caminha para situá-lo na expectativa de ser inteiramente fotografado,radiografado, calibrado, diagramado e condicionado. O corpo passou a serconsiderado como um sistema homeostático, em sua pura presença animal, o quejá foi chamado com justeza de corpo-máquina. A medicina sabe cada vez maissobre partes cada vez menores desse corpo-máquina, cujas leis e funcionamentovêm sendo desvendados de forma minuciosa e precisa. No final do século XX, oprogresso exponencial dos recursos tecnológicos permitiu uma dissecção virtualin vivo, que, além do mais, mudou o recorte do corpo. Houve uma fragmentação,um estilhaçamento produzido pelo discurso científico. O avanço do conhecimentofoi tamanho que só cabem a cada um o estudo e o domínio de um pequenofragmento desse corpo.
Em segundo lugar: muito distante do personagem carismático da era
pré-científica, o médico de hoje caminha para tornar-se, se já não se tornou,um técnico. Cada vez mais, é um especialista, num sistema que se equilibracriando o lugar do generalista. Eu disse generalista, que é diferente de clínicogeral. A diferença está na eliminação do clínico. Com efeito, estaríamos numtempo em que não haveria mais lugar para a clínica? Em que a tecnologia teriaestabelecido um acesso direto ao substrato anatômico ou fisiológico,dispensando qualquer mediação? É uma pergunta.
Duas grandes mudanças, portanto. Há algo comum nessas duas evoluções,
que é a exclusão da subjetividade do examinado e do examinador. O que é, porsinal, uma das condições do discurso científico.
LACAN, J. (1985) Psicoanálisis y medicina (1966). In: Intervenciones y textos. BuenosAires: Manantial, p. 87.
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A evolução que está sendo considerada apresenta nítidas vantagens. O
saber médico desenvolveu-se de forma exponencial, no último século; muito maisdo que nos dois milênios anteriores. E o poder de cura da medicina aumentou demaneira correspondente, traduzindo-se na produção de número infinito de agentesterapêuticos novos, que são colocados à disposição do público. Desenvolvimentocientífico que inaugura e põe, cada vez mais em primeiro plano, um novo direito dohomem à saúde, que se motiva já em organização mundial. Mas - é preciso levarem consideração - há um preço a ser pago por isso. Algo ficou de fora com esseprogresso. O que ficou de fora é precisamente aquilo de que a psicanálise seocupa: o reino da subjetividade, o campo do desejo e do gozo.
Voltarei, agora, para onde estávamos: por que não reduzir a saúde e a
doença a termos rigorosamente anatômicos e fisiológicos?
Por vários motivos. Em primeiro lugar: a oposição saúde-doença, enquanto
oposição excludente, é muito precária. Cada um de nós não é concernido saudávelou doente; muito pelo contrário, cada um de nós é mais bem situado como saudávele doente. A saúde e a doença são partes de um mesmo sistema. A doença estásempre presente na definição de saúde, nem que seja como possibilidade. A doençanão é a negação da saúde, mas a sua mais fiel companheira. Saúde e doençacoexistem em cada um de nós, nas mais variadas proporções, e só emcircunstâncias limitadas impedem a capacidade de trabalho.
Em segundo lugar: o problema maior é que o que chamamos de saúde ou
doença não inclui apenas aspectos anatômicos e fisiológicos, ditos objetiváveis,mas, também, aspectos subjetivos, que escapam a qualquer verificação objetiva. Não é necessário ir muito longe: o mais importante de todos os sintomas médicos,a dor, é inteiramente subjetiva: não há como fotografá-la, medi-la, registrá-la. Adificuldade começa aí, mas vai muito longe: quando entram em cena as doençasditas mentais, das quais se ocupam a psiquiatria, a possibilidade de um substratoanatômico-fisiológico característico cessa quase que inteiramente de existir. Nemmesmo a mais grave das doenças mentais, a esquizofrenia, pode ser caracterizadaem termos anatômicos e fisiológicos. Enquanto que, para a medicina, existe umanormatividade biológica, no caso da psiquiatria o que serve de fundamento é anorma social. Com efeito, é a partir dela que se constituem os chamados transtornosmentais e do comportamento. No terreno assim delineado, o poder determinantedos impulsos e dos desejos tem um peso muito maior. Tentarei traduzir em palavrasuma das possibilidades que estou vislumbrando. Um transtorno mental pode servivido não apenas como um estorvo, mas como uma estratégia pela sobrevivência. Isso é válido para qualquer doença, mas, no caso do transtorno mental, sequerexiste um substrato anatômico e fisiológico que sirva de parâmetro confiável. Ondetermina o impedimento causado pela limitação e pelo sofrimento, e onde começa amanobra pelo benefício secundário, essa é uma questão difícil de decidir, em quepese a sua frequência.
A complexidade dessa questão tem sido agravada pelas diretrizes que
norteiam a atual Classificação Internacional de Doenças (CID-10), adotada pelaOrganização Mundial de Saúde e inspirada no Manual Diagnóstico e Estatístico(DSM), da Associação Psiquiátrica Americana. A primeira edição do DSM saiu em1952. O seu advento é rigorosamente paralelo ao advento do psicofármacomoderno. E a história de um não pode ser concebida sem a história do outro.
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O DSM é a substituição das grandes categorias nosológicas de outrora por
um grande número de síndromes ou sintomas-alvo, cuja finalidade indisfarçável éservir melhor aos objetivos do tratamento medicamentoso. O psicofármaco, essegadget poderoso do discurso da ciência, é a quinta - essência do DSM.
A psiquiatria que prevaleceu no século passado até os anos 80 tinha uma
preferência inequívoca pelo diagnóstico único. Além disso, tal como a medicina,tinha uma preferência pela monoterapia medicamentosa. Quer dizer, sempre quepossível, um único diagnóstico e um único medicamento. A psiquiatria que se tornouhegemônica na virada do século, e que adota a Classificação Internacional, temuma nítida vocação para o diagnóstico múltiplo, para a multiplicação dascomorbidades. A pulverização dos diagnósticos é de tal ordem que dificilmentealguém escapa de um ou mais rótulos sindrômicos. Também no plano terapêuticohá diferença: a sua opção preferencial é pela polifarmácia. Cada vez mais a receitaé um coquetel de psicofármacos.
O assédio da indústria farmacêutica, que atinge amplamente a medicina, é
mais evidente em relação à psiquiatria. A estratégia é considerar cada sintomacomo um “transtorno”, dar-lhe um nome grave e sonoro, além de batizá-lo comuma sigla. Assim, por exemplo, a tensão pré-menstrual tornou-se transtorno disfóricopré-menstrual ou TDPM; a impotência sexual tornou-se disfunção erétil ou DE. Oobjetivo é óbvio: associar cada um desses diagnósticos ao uso de um medicamento. O caso da timidez é esclarecedor. Em 1980, no DSM III, ela foi incluída como fobiasocial. Em 1994, no DSM IV, passou a ser chamada de transtorno de ansiedadesocial. Tratada com o medicamento Paxil, este se tornou um fenômeno em matériade vendas. O marketing trabalha com eficácia para fazer acreditar que só existemdois tipos de pessoas: as que precisam de psicofármacos e as que ainda nãosabem disso.
A teoria inconfessa do DSM é esta: criar uma classificação que sirva à prática
da medicação. E a etiologia que o DSM subentende é esta: cada condiçãopsiquiátrica é causada por um desequilíbrio bioquímico em última análise denatureza genética. É claro que a etiologia postulada induz subrepticiamente aouso de remédios.
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Farei breve recapitulação de algo que já foi apresentado de modo sumário.
Para Freud, a civilização ou cultura assenta-se em dois pilares: a imposiçãocoercitiva do trabalho e a renúncia à satisfação pulsional, razão pela qual cadahomem se torna seu inimigo potencial. Além das restrições impostas a todos,existem outras, que somente atingem determinadas classes sociais. No entanto,aspirar à supressão da cultura é grave miopia: sem ela, o que sobrevém é a barbárie.
Que meios a civilização utiliza para se manter, ou para conciliá-la com cada
Freud menciona o supereu, instância psíquica do sujeito que representa a
lei paterna, ou a interiorização dos mandamentos da cultura.
Apresenta também os ideais culturais, mediante os quais os oprimidos se
identificam com os que os dominam e exploram.
Inclui, finalmente, as representações religiosas, que derivam do complexo
paterno (ambivalência, ou amor e ódio em relação ao pai), e cuja finalidade éproteger o homem das ameaças da natureza e do destino, principalmente da morte,e dos danos da própria vida em sociedade, reconciliando-o com a cultura.
Freud comenta que a religião apresenta os mandamentos da cultura como
de autoria divina e obtidos graças à revelação. E acrescenta: a civilização dariaum grande passo se reconhecesse sua origem humana; eles perderiam suasantidade e sua rigidez, e, em vez de aboli-los, os homens lutariam para aperfeiçoá-los. Perspectiva que, sem dúvida, reforçaria a importância da ordem jurídica nareferida função conciliadora. O pai da psicanálise, porém, não se entusiasma comsua proposta, e permanece céptico quanto ao futuro da humanidade.
A cultura, nos dias atuais, está muito diferente da época de Freud. A
emancipação da mulher e a liberação dos costumes apontam para o seguinte:declínio do pai e queda dos ideais. Há o franqueamento não só das pulsões sexuais,mas, também, das destrutivas.
A civilização sustenta-se, então, num pilar principal: o trabalho imposto. E com que novos meios ela conta, para compensar tão expressivas perdas?O mais poderoso é o gozo consumista, com o bem-estar que ele traz. No
entanto, é um gozo insaciável (como todo gozo), e traz novos problemas.
Outro recurso é o renascimento ou a reedição do fervor religioso, com os
Finalmente, não há como desconhecer a nova ênfase no controle social
a partir de agentes exteriores ao sujeito, devido à decadência do agente limitadorinterno (supereu freudiano) e à queda dos ideais culturais. Nesse contexto,situa-se o papel da ordem policial e jurídica.
O resumo apresentado deixa claro: o trabalho, como o principal pilar de
sustentação da civilização contemporânea, e a ordem jurídica, como importantemediadora do conflito do homem com a cultura.
No horizonte, dois grandes riscos. O primeiro é aquele em que a cultura
esmaga o homem. É a escravidão, é a ditadura. O segundo é aquele em que ohomem esmaga a cultura. É a lei do mais forte, é a barbárie.
No campo mais restrito do trabalho, ou dos direitos trabalhistas, surge a
questão da doença. O que foi feito para proteger o trabalhador pode por ele ser
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usado como arma contra a cultura. Não há solução fácil para nenhuma dessasquestões.
Talvez seja esta a principal contribuição da psicanálise ao Direito:
problematizar, mostrar quanto é complexo e difícil o seu trabalho. Como se issofosse ainda necessário.
A contribuição da psicanálise ressalta ainda outro aspecto. Perante a ética
da psicanálise, cada caso é rigorosamente único, cada caso é rigorosamentediferente do outro. O que prevalece é o um a um. Ora, sabe-se, por outro lado, quea lei é regra de alcance geral, perante a qual todos são iguais. Existe, desse modo,uma distância e uma tensão entre o universal da lei e o singular do caso único. Como enfrentar esse impasse? Fica o desafio, que tem como horizonte ahermenêutica jurídica.
Freud afirmava que a psicanálise, diferente da religião, não trouxe a boa
nova. E muitos avaliam que em Freud e na psicanálise há pessimismo. Não é bemassim. Apenas não se perde de vista nossa fragilidade fundamental diante dosgrandes desafios, por maior que seja a nossa força. Ou a nossa ignorânciafundamental diante dos grandes mistérios, por maior que seja a nossa sabedoria.
Certa feita, o fundador da psicanálise enumerou três tarefas impossíveis:
governar, educar, psicanalisar. Creio não ferir o espírito do seu texto ao acrescentaruma quarta tarefa impossível: julgar.
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