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INTERLOCUÇÕES ENTRE PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO
QUEIROZ, Daisy Seabra de – FAFIMA
GT: Psicologia da Educação /n.20
Agência Financiadora: Não contou com financiamento.

Introdução
As questões e reflexões discutidas no presente texto referem-se à interface da Psicologia com a Educação na atualidade. As aproximações complexas entre ambas remontam aos primórdios da Psicologia e correspondem ao crescente monopólio da educação por parte da escola em meio às transformações decorrentes da industrialização. (Ariès, 1981) Todavia, no contemporâneo, tais relações parecem intensificar-se e ganhar nuanças próprias, justificando um exame cuidadoso. Em diferentes países e, especificamente, no Brasil vem ocorrendo um estreitamento dos vínculos entre teorias psicológicas e processo educacional no contexto das recentes reformas. Evidências emergem nos discursos oficiais, assim como nas falas cotidianas dos educadores. (Silva, 1998; Moreira, 1996) A intimidade em questão tende a ser interpretada como parte do percurso natural das relações entre esses campos, contribuindo para a melhor qualidade do processo educacional. Aperfeiçoamento este propiciado por uma nova compreensão do sujeito e das condições do conhecimento na via Nosso intento consiste justamente em interrogar a natureza das alianças que se apresentam como importante motor das transformações necessárias à educação. Cabe analisar as inclinações presentes nos ‘novos’ contornos da subjetividade-cognição, considerados responsáveis pelo privilégio de certas correntes psicológicas como referenciais teórico-metodológicos das práticas educacionais. Pretendemos alcançar nossos objetivos voltando a atenção para a rede em que se inserem as alianças em questão. A princípio, serão focalizadas possíveis afinidades entre a compreensão na via da construção e a tradição de pensamento dominante. Em seguida, salientaremos as articulações entre as ‘novas’ concepções e as práticas de poder vigentes na escola. Tal procedimento permitirá discutir os efeitos das aproximações entre Psicologia e Educação no que tange à produção de subjetividade, isto é, à constituição de modos de existência. O distanciamento crítico face a certas premissas, que ameaçam tornar-se dogmas e normas, engendra um movimento de desnaturalização. Gesto que abre caminho para a criação de outras compreensões da subjetividade e da cognição, assim como, para novos agenciamentos entre os saberes psicológicos e as Subjetividade e condições do conhecimento na via da construção
“As pedagogias psi parecem dominar, hoje, a teoria e a prática educacionais. No mundo inteiro, reformas educacionais e currículos adotam como orientação principal o construtivismo psicológico ou pedagógico sob seus vários nomes ou versões (.) o ‘novo’ professor ou a ‘nova’ professora das reestruturações docentes é, decididamente, uma criatura psi”. (Silva, 1998, p.7) As teorias psicológicas que postulam o sujeito e a cognição em termos de construção vêm ganhando mais e mais espaço nas últimas décadas. Elas marcam presença nos cursos de formação de educadores (inicial e continuada) e, de certo modo, protagonizam a fundamentação teórica das recentes reformas educacionais (PCN). A Psicologia Genética de Piaget e a Teoria Histórico-Cultural de Vygotsky destacam-se nesse panorama. Fato que nos leva a privilegiar as contribuições das duas abordagens ao caracterizarmos os ‘novos’ contornos da subjetividade-cognição. Em virtude dos limites do presente trabalho não será possível nos determos nas importantes peculiaridades de cada perspectiva. Serão focalizadas as inclinações comuns, fazendo-se uma ou outra referência ao modo específico como cada uma as concretiza. Partimos da consideração de que, apesar dos diferentes percursos (Souza e Kramer, 1991) e das distintas questões que as mobilizam (Castorina, 1997), ambas as teorias enraízam-se em um mesmo solo. Pressupostos idênticos conduzem a determinado desenho da subjetividade e da cognição. Sem dúvida, as teorias em questão promoveram importantes rupturas nos planos teórico e prático. A partir delas foram superadas compreensões cristalizadoras do sujeito e da cognição atreladas a determinismos ambientalistas ou de cunho inatista. O caráter estático dessas compreensões, em vários momentos, inspirou práticas educacionais de cunho adaptativo ou marcadas pelo imobilismo face a condições dadas e definitivas. Piaget e Vygotsky, visando explicitamente ultrapassar tais concepções, afirmam a processualidade, isto é, o movimento de construção das “estruturas” ou “funções” psíquicas. (Piaget, 1983; Vygotsky; 1994) Despido de bagagens inatas e não submisso às influências unívocas do meio, impõe-se ao sujeito a tarefa de edificar as condições do O movimento de gênese realiza-se através da inter-relação dinâmica do sujeito com forças diversas. A porosidade aos acontecimentos fornece a matéria prima da construção. Na Psicologia Genética de Piaget, a interação com o mundo físico e social propicia, pouco a pouco, a ascensão a estágios de desenvolvimento mais complexos. (Piaget, 2001). Em Vygotsky, a internalização dos sistemas simbólicos vigentes no contexto histórico-social viabiliza a formação das funções psíquicas superiores, típicas do humano. (Vygotsky, 1996) Deste modo quebra-se um certo encapsulamento do sujeito, assim como a passividade frente ao ambiente, pois, nos dois enfoques, o sujeito é atravessado pelas forças do mundo, ao mesmo tempo em que atua sobre ele. O delinear do sujeito e das condições do conhecimento na via da construção acarreta outra importante ruptura em relação às teorias que predominaram na história da Psicologia e no âmbito educacional. Referimo-nos ao espaço aberto às diferentes formas de conhecer e realizar-se. Muito já foi dito acerca das contribuições de Piaget sobre as variações do funcionamento cognitivo ao longo do desenvolvimento. Formas diversas de compreender, sentir, relacionar-se e atuar são afirmadas. A teoria vygotskyana também enfatiza as diferenças emergentes na psicogênese, atrelando-as ao dinamismo histórico-cultural. O diverso parece assim insistentemente enfatizado, tanto no plano das forças do mundo que, todo tempo, mobilizam o sujeito, como nos vários desenhos As rupturas assinaladas manifestam-se na proeminência de uma temática que tende a reverberar em mudanças no cotidiano escolar. As duas abordagens, cada uma a seu modo, discutem amplamente as relações entre aprendizagem e desenvolvimento. O processo de constituição do conhecimento passa a vincular-se às conquistas da psicogênese, acarretando a reformulação de aspectos centrais das relações ensino-aprendizagem. As intervenções educacionais almejam novos objetivos distanciados do mero acúmulo de conteúdos. Nas palavras de Piaget (1972, p.161): “Se o pensamento da criança é qualitativamente diferente do nosso, o objetivo da educação é compor a razão intelectual e moral, (.) ajudar a criança a construi-la ela mesma”. Nessa via, os conteúdos relativos aos saberes científicos e à produção cultural em geral tornam-se matéria prima da composição do instrumental cognitivo e do sujeito como um todo. A metodologia não pode reduzir-se à simples transmissão de conceitos, princípios e habilidades. Cabe propiciar aos educandos oportunidades de atuar sobre o objeto de conhecimento clarificando-o, ao mesmo tempo em que são forjadas as funções cognitivas. Trata-se de um procedimento complexo que implica na organização das atividades de acordo com o estágio de desenvolvimento, a natureza do saber em questão, o momento da aprendizagem, entre outros. (Coll et al., 1997) A interação com o outro social assume um lugar de destaque na concretização dos objetivos assinalados. O sucesso do processo requer, além das relações com o professor, o intercâmbio cotidiano com os colegas de classe. Experiência que, afora as conseqüências sobre o plano da socialização, repercute no estabelecimento do pensamento objetivo, isto é, de formas mais complexas e eficazes de lidar com o mundo. (Piaget, 2001; Vygotsky, 1984) Ao contrário de certas afirmações apressadas, o papel do educador mostra-se fundamental, imbuindo-se de maior complexidade. Cabe a ele organizar os conteúdos e estratégias adequados ao momento do desenvolvimento, suscitando situações desafiadoras que conduzam o aprendiz a novas interpretações e elaborações. (Piaget, 1972; Vygotsky, 2001) A Educação, através da participação ativa dos vários elementos envolvidos, contribuiria para a construção do sujeito como um todo. O painel que rapidamente esboçamos parece corroborar a premissa de que as teorias em questão traçam novos contornos da subjetividade-cognição, possibilitando transformações fundamentais no campo educacional. De agora em diante, analisaremos os entrelaçamentos com a tradição do pensamento ocidental a fim de melhor avaliarmos Antigos pressupostos revigoram-se nas ‘novas’ tendências Na passagem do período medieval para o Renascimento reviravoltas do pensamento trouxeram à cena, simultaneamente, as dicotomias homem-mundo, sujeito- objeto e a proeminência da pergunta pelas condições do conhecimento. Em meio a um complexo jogo de forças, foi também gerada a resposta que perpassa desde então grande parte da filosofia e dos saberes em geral. Na distância cravada entre homem e mundo instalam-se as possibilidades do conhecimento identificadas com princípios invariantes do pensamento. Representações organizadas segundo regras lógicas universais propiciam o acesso do sujeito cognoscente ao mundo-objeto. (Deleuze, 1988) Ao longo dos séculos o sujeito delineia-se mais e mais como aquele que clarifica o mundo e o traz sob controle. Afirma-se “explicita ou implicitamente, o sujeito como fundamento, como núcleo central de todo o conhecimento, como aquilo em que e a partir de que a liberdade se revelava e a verdade podia eclodir”. (Foucault, 1999a, p.7) A tradição de pensamento que assim se estabelece apresenta-se como condição de possibilidade da Psicologia e das ciências humanas em geral. O saber psicológico emerge como afirmação contundente do humano na via do “conhecimento-representação”, pois nele subjaz a exacerbação da potência cognitiva através da identificação entre sujeito e objeto. A perspectiva que concebe o sujeito e a cognição nos limites da “representação” reafirma antigos valores inaugurados pelo pensamento grego – unidade, identidade, permanência e verdade. (Nietzsche, 1978) Com novas vestes persiste a afirmação exclusiva do real sob a égide de princípios absolutos, identitários e invariantes. A transformação incessante, a diversidade e imprevisibilidade dos acontecimentos são desqualificadas e lançadas na zona dos “simulacros”, meras cópias distanciadas das essências modelares. (Deleuze, 1988) Valores milenares condicionam o nascimento da Psicologia e atravessam sua história através da afirmação da subjetividade-cognição nos moldes da representação. (Kastrup, 1999) Nossos estudos em torno das teorias em questão evidenciam que, apesar dos esforços em superar tendências cristalizadoras, as malhas do pensamento hegemônico não as deixam escapar. Os aspectos considerados disruptores – a processualidade e a abertura ao diverso – parecem minados sob a vigência de leis invariantes e universais. O dinamismo atrelado ao sujeito e à cognição sofre restrições por orientar-se segundo princípios ordenadores absolutos. A “equilibração majorante” em Piaget (1976) e o jogo das “sínteses dialéticas” em Vygotsky (1996) garantem rumo certo às transformações do desenvolvimento. Os acontecimentos têm sua potência inovadora reduzida na medida em que são filtrados pela grade representacional e integrados à dinâmica predeterminada do desenvolvimento. Ao mesmo tempo em que a Psicologia Genética enfatiza a importância dos impasses apresentados pelo mundo na quebra de antigas organizações cognitivas, minimiza seus efeitos condicionando as alterações à conquista de estruturas que integrem as anteriores em uma organização de ordem superior. Estruturas intelectuais mais complexas e eficazes se sucedem, concretizando a seqüência fixa do desenvolvimento. De modo semelhante, a Teoria Histórico-Cultural submete a disparidade dos acontecimentos à ordem histórica e às leis da internalização, garantindo assim momentos previsíveis à psicogênese. Uma ordem psíquica absoluta, nas suas versões interna e externa, impõe-se às transformações, conduzindo-as de modo necessário e previsível. A vigência de princípios ordenadores a priori alia-se a modelos ideais que acenam como ponto de chegada da psicogênese. Em ambas as teorias a construção confunde-se com um movimento evolutivo rumo a processos cognitivos abstratos dotados de elevada amplitude e eficácia no trato com o mundo. De acordo com Piaget (1983, 2001) o desenrolar dos estágios conduz pouco a pouco ao pensamento de caráter lógico-matemático que, tendo se emancipado das amarras do egocentrismo, associa-se à conquista da objetividade. A inteligência identifica-se assim com operações que articulam representações abstratas do objeto segundo regras universais. A Psicologia vygotskyana também postula o pensamento formal como telos, privilegiando a formação de instrumentos cognitivos calcados em categorizações crescentemente abstratas. (Vygotsky, 1996) A compreensão do mundo se dá na medida em que a diversidade dos acontecimentos é traduzida em complexos sistemas conceituais. Nas duas abordagens, os processos psíquicos superiores configuram-se segundo os ideais de reconhecimento e antecipação dos fenômenos do mundo. O dinamismo que permeia a cognição parece arrefecido, assim como a diversidade de seus desenhos. As várias formas que assume soam como mera passagem, preparações em direção ao modo superior que merece Tendo em vista a intimidade do sujeito com as condições do conhecimento, a abertura às diferentes formas de ser também é minada a partir do modelo ideal. Delineia-se o sujeito do conhecimento-representação como a forma mor à qual a psicogênese conduz. O “sujeito epistêmico” piagetiano se estabelece como modelo que regula as realizações do humano nos moldes da interação lógico-formal. No mesmo tom, Vygotsky entrelaça o propriamente humano ao ‘sujeito histórico-racional’. “Sistemas interfuncionais” trabalham sobre “sistemas conceituais”, atribuindo sentido ao mundo e dominando-o. (Veer e Valsiner, 1999) Revigora-se a concepção naturalizante da subjetividade, pois um modelo absoluto norteia as concretizações existenciais. As possibilidades de realização do humano restringem-se aos limites dessa ordem desde A força das concepções naturalizantes que nada querem deixar de fora fundam os ‘novos’ contornos da subjetividade-cognição na via da construção. Predominam modelos do humano marcados pelo dinamismo e com certa abertura ao diverso, mas ainda assim modelos. Como tais trazem em si a relação estreita com as boas cópias, suas manifestações plenas, e o distanciamento dos “simulacros”. Estes remetem à multiplicidade mutante que perverte o ideal. (Deleuze, 1988) Nesse sentido, os saberes psicológicos em questão tendem a arrastar para suas relações com as práticas educacionais modelos de sujeito, de conhecimento, de aprendizagem e, necessariamente, zonas de carência, que abarcam a diversidade descontrolada dos desvios. Alianças saber-poder e subjetividades assujeitadas
Saltam aos olhos as afinidades entre o ritmo do trabalho fabril predominante no início do século XX, as intervenções disciplinares da escola e os condicionamentos behavioristas formadores de habilidades. Trata-se de uma teia de relações que articula as demandas do primeiro momento do capitalismo industrial (Bauman, 1999), as práticas institucionais disciplinares (Foucault, 1977) e saberes psicológicos marcados por compreensões estáticas e mecânicas do sujeito e da cognição. Embora esses vetores ainda vigorem, muitos outros invadem a cena contemporânea. A produção fabril não consiste mais no principal veio da economia, o mercado, cada vez mais virtual e acelerado, o substitui. (Hardt e Negri, 2001) Saímos da primazia da produção para a do consumo - consumo de bens, de serviços, de conhecimentos, de modos de ser. (Bauman, 1999) No novo sistema de tecnologias predominante todas as modalidades submetem-se à informação e associam-se ao mercado comprimindo o espaço e o tempo. (Santos, 2000) Impõe-se o C.M.I. “O capitalismo contemporâneo é mundial e integrado porque potencialmente colonizou o conjunto do planeta, porque atualmente vive em simbiose com países que historicamente pareciam ter escapado dele (os países do bloco soviético, a China) e porque tende a fazer com que nenhuma atividade humana, nenhum setor de produção fique fora do seu controle.” (Guattari, 1987) A expansão e intensificação da ordem capitalista exigem a colonização dos modos de existência, importa formar trabalhadores e consumidores que assumam pacificamente os seus papéis. De acordo com Guattari (2000, p.26), as forças que administram o capitalismo entenderam que “a produção de subjetividade talvez seja mais importante hoje do qualquer outro tipo de produção”. No caso das modulações contemporâneas, exigências específicas remetem a novos contornos da subjetividade. As práticas de poder ultrapassam a modalidade disciplinar buscando uma sintonia com as demandas mutantes da atualidade. Os mecanismos disciplinares visam inscrever valores e hábitos no corpo do estudante, do operário, do soldado. Formas prontas são ortopedicamente remodeladas através da organização minuciosa do espaço, do tempo, das atividades e de uma vigilância hierárquica que tudo alcança. (Foucault, 1977) Sistemas complexos de normas, em suas associações com os saberes, governam as realizações existenciais, atribuindo-lhes valor ou identificando-as a desvios. À luz das ciências humanas, moldam-se sujeitos adaptados às necessidades mais rígidas e duradouras do capitalismo fabril. Sob a intervenção das instituições, da disciplina e da Psicologia constitui-se o ‘homem máquina’: operário padrão, soldado obediente, aluno carregado de conhecimentos e habilidades. As exigências variáveis do contemporâneo não parecem ser atendidas pelo modelo acima, impõe-se agora a “sociedade de controle”. (Deleuze, 1992) Práticas de poder ao “ar livre” espalham-se pelos interstícios do socius. Modulam-se incessantemente neutralizando gestos de resistência. Atuam, segundo Foucault (1999b), sobre a “vida não qualificada”, isto é, sobre a potência mesma de produção de formas. Normas não mais delegam sobre a conveniência ou a inadequação de formas dadas, mas orientam o próprio movimento de construção. Cumpre intervir no plano das capacidades, gerir as condições de domínio dos conhecimentos ou habilidades, os quais devem variar para atender às demandas do momento. As alianças entre as tecnologias da informação, o ritmo acelerado do mercado e as práticas de controle determinam, através de movimentos fugazes e penetrantes, a flexibilidade das competências. Surgem “atletas do devir” (Kastrup, 1999) que desdobram-se na corrida pelo conhecimento, reequilibram-se (no campo afetivo e das relações sociais) e adaptam-se a novas funções acompanhando assim o compasso da Poderes disciplinares e de controle mesclam-se no contexto global. (Foucault, 1999b; Deleuze, 1992) Os discursos oficiais e as falas cotidianas dos educadores parecem evidenciar o mesmo entrelaçamento no nível micro da escolarização. À presença insistentemente denunciada dos mecanismos disciplinares na escola associa-se o exercício ondulante das forças de controle. Observamos, por exemplo, que a importância da escolarização nos dias atuais (Martins, 1999) convive com o enfraquecimento das fronteiras da instituição. Propostas contundentes de “educação permanente”, de “educação a distância”, assim como certo tipo de porosidade ao entorno (principalmente família e comunidade mais próxima) evidenciam a expansão das intervenções educacionais para além dos muros da escola. Abrangência, penetração e intensidade próprias aos controles, que se evidenciam ainda nos objetivos amplos de formar o “cidadão integral” a partir da intervenção de todas as figuras presentes, que se investem assim do papel de educadores. Estes atuam sobre todas as dimensões do educando (inclusive por avaliações), nos vários cantos da escola (e fora dela), ininterruptamente. “No regime das escolas: as formas de controle contínuo, avaliação contínua, e a ação da formação permanente sobre a escola, o abandono correspondente de qualquer pesquisa na Universidade, a introdução da ‘empresa’ em todos os níveis de escolaridade”. (Deleuze, 1992, p.225) Tais práticas entrecruzam-se com saberes “psi”, cujo tom sintoniza-se com o dinamismo e a variação dominantes. Tendem a gerar subjetividades na via da construção ondulante que, em última instância, está sob as rédeas de princípios invariantes da cognição e de normas hegemônicas do capitalismo global. Renovam-se as alianças entre saberes e poderes, o que repercute em modelos de existência marcados pela abertura controlada para a transformação e a diversidade. A persistência da dualidade modelo e falta Pretendemos, até aqui, interrogar o caráter inovador das concepções de subjetividade e cognição dominantes na interface da Psicologia com a Educação. Destacamos, em meio as suas condições de possibilidade, a presença de antigos valores absolutos que refreiam as tendências disruptoras aí presentes. Tais valores tomados pelas questões, respostas e dicotomias emergentes no Renascimento configuram-se agora como potência de construção, não só do conhecimento que domina o mundo, como também dos recursos cognitivos que o possibilitam. A subjetividade esboça-se como força construtora, cujas vicissitudes orientam-se segundo princípios e ideais absolutos. Tendências naturalizantes comprometem as dimensões inovadoras, traduzindo-as em processualidade conservadora e diferenças hierarquizadas. As abordagens da subjetividade-cognição em termos de construção concorrem, junto com práticas de poder vigentes no campo educacional, para efeitos outros que os insistentemente aclamados. Malgrado as insatisfações, os questionamentos e os movimentos de reinvenção que persistem no dia a dia (Linhares, 2001), reformas mantenedoras do status quo tendem a ocupar o cenário. As promessas de maior abrangência e melhor qualidade a partir de disposições oficiais fundadas em contribuições do saber psicológico parecem comprometidas neste contexto. Em lugar da abertura ao movimento de criação do humano e do conhecimento positiva-se um dinamismo direcionado e adaptável aos interesses dominantes. Trabalha-se sobre competências de acordo com a máxima do “aprender a aprender”. (Duarte, 2000; MEC, Forjam-se sujeitos afeitos à lógica formal do modelo computacional, prontos a assumir funções e tarefas necessárias ao mercado global. (Hardt e Negri, 2001) Recentes e abrangentes exigências do mundo do trabalho demandam a disponibilidade do sujeito nas mais variadas dimensões. O mundo marcado pelas tecnologias, pelas trocas que ultrapassam restrições de tempo, espaço, culturas requer controle das emoções, intercâmbios pessoais satisfatórios, flexibilidade, competência e criatividade.(ibid.) Nesse contexto, as alianças entre Psicologia e Educação promovem capacidades intelectuais e disposições sócio-morais, prevenindo contra a ameaça de desvios ou Assim sendo, o diverso é acolhido, ao mesmo tempo em que se submete à vigência de um modelo ou modelos. Faz-se presente como possibilidade posta pelo caráter aberto e variável das novas configurações. Sob uma espécie de lógica hegemônica que entrelaça estruturas econômicas, formações de poder e correntes psicológicas, as diferenças não portam seu próprio estofo e valor. Elas são a partir de uma ordem que as transcende. As realizações existenciais distribuem-se em uma hierarquia que aproxima as boas cópias como preparações ou manifestações e condena outras a mero desvios. Desse modo, delineiam-se “estágios de desenvolvimento” e condições críticas em que o equilíbrio é ameaçado e a adaptação comprometida. (Piaget et al., s/d) Desenham-se, na perspectiva de Vygotsky “momentos” no avançar da psicogênese, ou “primitivismos” e “deficiências” que marcam distância do pensamento abstrato, abalando a possibilidade de domínio sobre a natureza e o próprio homem. (Vygotsky, 1996) A mesma hierarquização do diverso insinua-se nos discursos dos educadores, ao lado das preocupações em acolher as diferenças. O cruzamento de formulações psicológicas com inclinações naturalizantes e formações contemporâneas de poder tecem a atenção terapêutica sobre o diverso. Cabe compreender e atender às carências, identificar sua natureza para melhor tratar. Persistem em cena os “alunos problemas” necessitando de recursos especiais e, se possível, da atuação conjunta de especialistas. Os desvios dos comportamentos ideais e as variações de ritmo de um desenvolvimento preestabelecido são muitas vezes relacionados a comprometimentos de cunho interno. Recentemente, de modo predominante, são atribuídos a lacunas sociais, especialmente familiares. A multiplicação sempre surpreendente de formas de conhecer, sentir, relacionar-se é reduzida ao escopo de modelos variados e estanques; unidade dispersa em diferenças estáticas. O sujeito racional criativo e flexível reafirma sua hegemonia mesmo quando parece ausentar-se – o desvio ainda é o modelo. Por seu lado, as “boas cópias” trazem também efeitos neutralizadores sobre o infinito de realizações possíveis. Fala-se na atualidade de uma escola de portas abertas, pronta a acolher todos como alunos pelo maior tempo possível Ninguém deve escapar ao esforço contínuo de produção das subjetividades necessárias. No mínimo, cabe à escola impedir as misturas “perigosas” com os acontecimentos potencialmente insurgentes. (Duarte, 2000) Desconfiamos que as alianças Psicologia-Educação estejam operando uma inclusão homogeneizante, em que as diferenças são acolhidas para serem melhor orquestradas. Os últimos comentários trazem maior clareza sobre a produção de subjetividade que tem lugar na rede de forças analisada. As promessas quanto ao efeito transformador das aproximações com novos contornos da subjetividade-cognição mostram-se abaladas. O panorama esboçado soa como mais uma versão de entrelaçamentos saber-poder voltados para o controle do diverso. A transformação e a variação não foram longe o suficiente, estão ainda sob as rédeas de princípios invariantes do sujeito e dos ditames autoritários do contemporâneo globalizado. Para atender às exigências do mercado, os vários dispositivos de produção de subjetividade desenham o novo homem: Conclusão
A premissa de que a compreensão do humano como construção concorreria para novos tempos da educação constituiu o foco de nossa análise. Detectamos em meio às interlocuções da psicologia com o processo educacional as marcas da tradição do pensamento ocidental e de mecanismos de poder enlaçados com falas oficiais e cotidianas. Em lugar de configurações inovadoras, reproduz-se a natureza humana na via do reconhecimento, agora volatizada em forças construtoras absolutas. Vigoram transformações predeterminadas por forças originárias e ideais, assim como diferenças estanques redutíveis, em última instância, ao idêntico. Sujeitos competentes e flexíveis movem os discursos e práticas na interface da Psicologia com a Educação. A versão atual de uma natureza humana cognoscente processual e diferenciada revitaliza a primazia de uma das dimensões da subjetividade. A perspectiva, que pretende pensar a subjetividade para fora de modelos totalizantes, afirma ao lado da forma, da organização, o movimento de transformação, de superação dos modos dados em favor de outros. (Guattari e Rolnik, 2000) Impõe-se a indissociabilidade entre produção e produto, força e forma. De um lado, “aspectos mais regulares da subjetividade, configuradores da forma sujeito” - forma estratificada e, de outro, “traços intensivos, correspondentes às molecularidades do a-subjetivo”. (Tedesco, 1999, p.45) O vaivém das duas dimensões viabiliza o existir. Sob a influência da tradição cartesiana privilegia-se a forma sujeito, reinventando-se o gesto platônico de afirmação de modelo absoluto e desqualificação da Trata-se de um momento ímpar das remodelações do interesse homogeneizante. O novo vigor deve-se à incorporação daquilo mesmo que poderia impor-se como força de resistência aos efeitos controladores, a saber: a processualidade e o diverso. O destaque dado à construção não subverte a unidimensionalização e passa a trabalhar a seu favor nas vestes da processualidade controlada e da hierarquização das diferenças. Os novos contornos trazem assim ameaças sutis e intensas no que diz respeito à produção de subjetividade. Uma outra forma de exclusão ganha espaço no âmbito da escola e da sociedade em geral, exclusão ao mesmo tempo paradoxal e radical. Paradoxal porque, como temos anunciado, dá-se através da inclusão do movimento e da diferença. Assinalamos ainda que as forças construtoras ou determinantes constituem o foco de discursos e práticas de poder na atualidade. Sobre elas atua o empenho controlador que busca reduzir tudo ao mesmo. Eis aí a radicalidade da exclusão, as intervenções não recaem sobre as formas dadas, mas sobre potência de construção que tudo atravessa. Cabe atuar sobre o movimento de emergência dos modos de ser para orientá-los desde o início, prevenir desvios, criar capacidades e atitudes adaptáveis às exigências do contemporâneo. Essa estratégia sutil volta-se sobre a zona amorfa da força de criação, promovendo a exclusão radical, pois corta pela raiz a infinita proliferação de formas. A essa altura, cabe salientar que não pretendemos com nossas reflexões e questões concorrer para o pessimismo e a paralisação. Distanciamo-nos do vivido para desnaturalizá-lo, quebrar olhares e gestos habituais e assim deixar espaço para novos estilos de existência. (Foucault, 1984) Com este pano de fundo, chamamos atenção para uma outra perspectiva sobre a subjetividade e a cognição. Acreditamos que seu agenciamento com o processo educacional, em meio a vários outros gestos necessários, possa dar outros rumos à produção de subjetividade. Rumos avessos aos assujeitamentos e sintonizados com movimentos de criação. Não nos referimos à criatividade, mera função psíquica submissa a princípios cognitivos universais. Não se trata da criatividade como flexibilidade servil às demandas do mercado capitalista internacional. Nela entranham-se concepções naturalizantes, valores milenares que homogeneizam os modos de existência. A criatividade associa paradoxalmente sujeito e assujeitamento. Ousamos falar aqui da criação como estofo da vida, como potência que atravessa todo e qualquer modo de ser. Não um processo psíquico orquestrado pelo sujeito com todos os outros no intuito de clarificar e dominar o mundo-objeto. Mas movimento insistente de constituição de formas que, enredadas na pluralidade mutante dos acontecimentos, mostram-se como contornos frágeis facilmente superáveis. Ao trazermos a perspectiva da subjetividade buscamos nos aproximar do jogo constante de produção e formas. Jogo que nos remete às dimensões da processualidade e abertura ao diverso. Desembaraçadas das causas primeiras e dos modelos ideais as transformações comportam em seu próprio desenrolar as forças determinantes. Estas não estão para além dos acontecimentos, mas em seu bojo. Forças heteróclitas (econômicas, sociais, tecnológicas, ecológicas, de mídia, entre outras) agenciam-se desenhando formas inusitadas. (Guattari e Rolnik, 2000) A presença do diverso não se restringe ao movimento de gênese, persistindo no próprio produto. Heterogênese, já que a partir dos encontros de múltiplos vetores emergem formas voláteis habitadas pela variação. Somos múltiplos, ou grupelhos como diria Guattari (1987), sempre Em lugar da criatividade orientada pelo sujeito submisso às realidades dadas, falamos de criação. Processo a partir do qual contornos frágeis de homem-mundo, sujeito-objeto, indivíduo-sociedade são traçados de modo passageiro. Subverte-se a concepção do homem como sujeito fundamento, lançando-o juntamente com a razão e a verdade no fluxo dos acontecimentos. A forma sujeito é mais uma invenção. (Foucault, 1999a; Deleuze, 1992) Tal rompimento com a compreensão naturalizante de sujeito cognoscente retira o conhecimento dos limites da representação e o identifica à dinâmica de criação de modos de existência. O processo cognitivo não mais se confunde com o “reconhecimento” sempre a revigorar configurações identitárias de sujeito e mundo. A cognição é a partir de criação e como criação. (Kastrup, 1999) Do seu movimento surgem produtos, inventos que remetem a novos mundos e outros modos de conhecer e existir. “E, se o homem foi uma maneira de aprisionar a vida, não será necessário que, sob uma outra forma, a vida se libere no próprio homem”? (Deleuze,1992, p.114) Afirmar a primazia da potência de criação parece devolver a cada ser, a cada realização existencial, a dupla dimensão de força e forma. Ao lado dos traços dados, vigora a possibilidade de invenção de outros, a abertura para a singularização (Guattari e Rolnik, 2000). A suspensão das concepções naturalizantes tende a reverberar sobre as relações cotidianas, promovendo uma maior suscetibilidade aos encontros geradores. Não consideramos possível propor fórmulas gerais que, na interface da Psicologia com a Educação, ofereceriam resultados previsíveis. Acreditamos que o humano está lançado na condição de “abertura constituinte”, quer dizer, carrega em si a necessidade de forjar-se ao longo da existência. Assim sendo, as trilhas, os encontros, as frestas se dão no próprio caminhar. Pretendemos apenas chamar a atenção para o risco de arrastarmos representações, pre-conceitos que possam obstaculizar as aberturas do caminhar. Consideramos que modelos de aluno, professor, aprendizagem, escola, mundo, e outros precisam ser colocados em questão, por mais abstratos, plurais e flexíveis que possam nos parecer. A partir daí, livres das cristalizações, os múltiplos encontros do cotidiano escolar podem reverberar no conhecimento invenção, ou seja, na criação de novos mundos, estilos A Educação depara-se com a difícil tarefa de equilibrar-se sobre a dinâmica instituído-instituinte. Ela precisa enfrentar o desafio de promover a invenção a partir de formas dadas, driblando os riscos do assujeitamento e provocando processos de singularização. Cada um de nós compartilha esse desafio, somos no mesmo risco. Criar rumos de existência parece ser a única maneira de habitar o aberto; impõe-se tomar a vida como obra e imbuir-se de um “querer-artista”. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Source: http://www.vigotski.net/anped/2003-GT20_tx01.pdf

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