MOVIMENTO EDITORIAL INDÍGENA: estudo das especificidades da produção escrita indígena através da análise de edições de mitos Kaxinawá Érica dos Santos Lima Profª Drª Cynthia de Cássia Santos Barra PORTO VELHO JULHO-2012 MOVIMENTO EDITORIAL INDÍGENA: estudo das especificidades da produção escrita indígena através da análise de edições de mitos Kaxinawá RESUMO: O presente artigo pretende discutir um movimento editorial recente no Brasil que alguns autores afirmam (ALMEIDA,2004; GOLDMBERG,2009) se tratar de um movimento de natureza literária. Em suas pesquisas (1999), Maria Inês de Almeida afirma ter encontrado entre os anos de 1996 e 1998 mais de 100 títulos de autoria indígena. A atitude de publicar livros é uma prática que vem sendo adotada por vários povos indígenas do Brasil nas últimas décadas. Estes livros estão ganhando espaço gradativamente na cultura do impresso tanto no nosso circuito literário nacional quanto dentro das próprias comunidades indígenas. Pretende- se, por meio deste trabalho, entender as condições de elaboração, edição e difusão destas obras publicadas por povos indígenas no Brasil nas últimas três décadas, visando a melhor compreensão da autoria e do movimento editorial indígena. Também se pretende analisar características destas obras que melhor representam as especificidades do movimento literário emergente. Serão destacadas, especificamente, a produção literária do povo Kaxinawá que habita terras indígenas no Acre. Esta etnia se sobressai por suas inúmeras produções, sendo uma delas, o livro ShenipabuMiyui: história dos antigos (1995; 2000), indicado como leitura obrigatória para vestibular de duas universidades federais brasileiras (UFMG, 2001; UFVJM, 2011). Palavras-chave: Literatura, povos indígenas, autoria indígena, Kaxinawá ABSTRACT: This article discusses a recent editorial movement in Brazil that some authors claim (Almeida, 2004; GOLDMBERG, 2009) it is a movement of literary nature. In her research, Maria Ines de Almeida claims to have found between the years 1996 and 1998 more than 100 titles of indigenous authorship. This attitude of publishing books is a practice that has been adopted by various indigenous peoples of Brazil. These books are gradually gaining ground in the culture of the printed circuit both in our national literary and within indigenous communities themselves. We intend through this article, understand the conditions of preparation, editing and dissemination of these works published by indigenous peoples in Brazil in the last three decades aimed at better understanding of indigenous publishing movement. We also intend to analyze the characteristics of these works that best represent the characteristics of this emerging literary movement. Highlight specifically the literary production of the people inhabiting Kaxinawá indigenous lands in Acre. This ethnic group stands out for his numerous productions, one of them, the book Shenipabu Miyui: ancient history, indicated as required reading for vestibular two Brazilian federal universities.
Keywords: Literature, indigenous peoples, indigenous authorship, Kaxinawá
1 INTRODUÇÃO
Nas últimas décadas do século XX, observamos a mudança de postura dos povos indígenas.
Eles decidiram que não mais esperariam que alguém ou alguma organização intercedesse por
seus interesses de terem seus direitos reconhecidos pelo Estado brasileiro (OLIVEIRA, 2006).
Os índios passaram a realizar suas manifestações políticas por conta própria, construindo
representações, fazendo alianças e levando seus pleitos à opinião pública.
A organização política dos índios também colaborou para o surgimento de uma literatura
produzida por escritores indígenas de forma sistemática e com características próprias. Desse
modo, assistimos ao surgimento do que podemos sem dúvida caracterizar como um novo
movimento literário1: aproximadamente quarenta povos indígenas do Brasil estão publicando
textos em livros. Se fizermos uma comparação desses livros, os chamados “livros da floresta”
(ALMEIDA, 2004), com o material produzido pelos europeus que descreviam as belezas e as
novidades da terra recém descoberta no século XVI, temos a impressão de que se trata de uma
nova apresentação da terra descoberta, só que dessa vez pelo olhar dos índios.
Essa literatura que surge é resultado de esforços em conjunto entre os professores e
pensadores indígenas e assessores não-indígenas. Os livros de autoria indígena são, na
maioria das vezes, custeados por órgãos oficiais (MEC) ou por ONGs, como, por exemplo, o
livro Arte Indígena Umutina, da etnia Umutina (MT), financiado pelo Ministério da
Educação. Raramente esses livros são publicados por editoras privadas. Podemos atribuir o
surgimento dessa literatura nova, principalmente, aos professores das mais de 1.500 escolas
indígenas que estão construindo a literatura de suas comunidades. Entretanto, esta literatura
ainda é pouco estudada em seus aspectos contemporâneos.
Podemos atribuir a escassez de estudos na área, principalmente, ao fato de que a existência da
literatura indígena foi “negada” por muito tempo, como nos mostra René Capriles:
O princípio no qual sempre se basearam os críticos dos valores desta narrativa sempre foi a etnocentrista e discutível afirmação de que todos os povos do nosso continente desconheciam a linguagem escrita fonética tal como ela é conhecida no mundo ocidental europeu desde a sua invenção pelos fenícios e o seu aperfeiçoamento realizado pelos gregos (CAPRILES, 1987, p.5).
1 Conferir (ALMEIDA, 2004) e (GOLDEMBERG, 2009); encontramos, nessas obras, pesquisas e dados que afirmam a existência de um novo movimento literário com características próprias: a literatura de autoria indígena.
Entendemos, então, que a literatura indígena demorou a ser reconhecida pela crítica
tradicional pelo fato de que só seria reconhecido como literatura aquilo que fosse baseado na
existência do livro tal como o conhecemos hoje, ou seja, como resultado de um esforço
milenar em torno do desenvolvimento das técnicas de escrita alfabética, com seus gêneros de
discurso. É preciso, contudo, analisar melhor o processo de aquisição e domínio da escrita por
parte dos índios que, aos poucos, mas desde os primeiros contatos com a civilização européia,
ainda no século XVI, foram incorporando a prática de escrever em sua cultura e, mais
recentemente, sobretudo a partir da década de 1990, através da escrita e publicação autoral de
livros, puderam reinventar a memória indígena no Brasil, configurando, desse modo,
identidades dinâmicas para os povos indígenas.
A Região Norte do Brasil possui uma vasta produção literária indígena. Uma etnia que se
destaca por sua produção literária é o povo Kaxinawá. Esta etnia possui uma série de textos
míticos já publicados. Historicamente, essas narrativas míticas orais foram sendo coletadas
por viajantes, antropólogos, lingüistas, e, então, foram publicadas como obras científicas ou
folclóricas. Hoje, os professores indígenas, ao escreverem e publicarem seus mitos,
concretizam o universo de sua cultura, seus costumes e suas crenças para a comunidade de
leitores do Brasil e do mundo. Por isso, a importância de estudar e analisar a produção
literária Kaxinawá atual, pois, por estarem produzindo, de modo autoral, estão construindo
um público, ou seja, começam a fazer parte da cultura do impresso como autores e não mais
como objetos de coletâneas científicas ou folclóricas.
De fato, é importante ressaltar que, através da escrita autoral de seus mitos, os índios se
apresentam como os autores de sua história para um circuito amplo de leitores. Os Kaxinawá
compõem hoje a população indígena Pano mais numerosa do Acre, com cerca de 5000 índios.
Como já assinalado, eles possuem uma boa produção literária, dentre a qual gostaríamos de
destacar o livro Shenipabu Miyui. Para a elaboração deste livro, foi feito um processo de
coleta de dados em várias regiões e várias narrativas foram gravadas pelos próprios indígenas.
Após um processo de seleção, o livro foi publicado originalmente em língua Hãtxa Kuĩ e
depois foram feitas versões em português e em outras línguas indígenas com as quais os
Kaxinawá se relacionam. O que observamos na atualidade indígena, por exemplo, no caso do
livro Shenipabu Miyui, é a mudança – tradução – de uma literatura oral para uma literatura
escrita. Na literatura oral é nítido o papel exercido pela obra na organização da sociedade,
pois se limita apenas a aquele grupo. Quando se começa a produção de uma literatura escrita é
garantida a intemporalidade e universalidade da obra, possibilitando a comunicação entre
vários grupos e não somente no âmbito restrito dos grupos em que atua e que a produzem,
como acontece na literatura oral. (CÂNDIDO, 1985).
Como já exposto, esta pesquisa pretende fazer a análise de duas edições do livro Shenipabu Miyui, uma publicada em 1995 e, a outra, em 2000. Essas edições apresentam diferenças
significativas de uma para a outra. Paralelamente, esta pesquisa desenvolverá um
levantamento bibliográfico acerca da relação dos Kaxinawá com a cultura do impresso:
primeiro como objeto de estudo, e, depois, como autores de livros. Acreditamos que o estudo
da produção literária Kaxinawá representa um estímulo para a valorização da cultura
indígena, o que consequentemente proporciona uma integração dos Kaxinawá ao leque
cultural brasileiro. Isso pode promover o enriquecimento da literatura brasileira
contemporânea. Assim, pretendemos com esta pesquisa, contribuir para a intensificação do
processo de reconhecimento de uma produção literária que, mesmo sendo recente, mostra-se
2 Contato indígena com a escrita alfabética
A cultura indígena sempre foi marcada pela oralidade. Essas comunidades costumam ser
consideradas pelo senso comum como sociedades ágrafas, ou seja, sem escrita. Contudo,
mesmo que a princípio os povos indígenas não fizessem uso da escrita alfabética, eles
utilizavam (e utilizam ainda) outros sistemas e códigos equivalentes à escrita alfabética que
são capazes de transmitir sua cultura de geração a geração, de forma eficiente (FERREIRA,
Para melhor entender a literatura de autoria indígena, é necessário compreender como se deu
o contato de cada povo indígena com a escrita alfabética. No caso dos Kaxinawá, o contato
com a escrita alfabética aconteceu a partir do momento em que as frentes extrativistas da
borracha os incorporam como força de trabalho nos seringais. A partir desse momento, eles
têm contato com a escrita, mas ainda não a dominam e, por isso, são enganados pelos
barracões, contraindo dívidas enormes que não podiam pagar nem mesmo controlar por não
A principal forma com que a escrita foi introduzida, desde os primeiros anos de contato, esteve relacionada à produção econômica da borracha e às relações de trocas comerciais estabelecidas entre os índios seringueiros e o barracão dos patrões: o valor da conta corrente, vital para a sobrevivência do seringueiro, não só constituiu como foi expressão de uma primeira relação com as escritas alfabética e numérica (MONTE, 2000, p.14).
Por conta de toda a exploração sofrida, surgiu o interesse por parte dos Kaxinawá em dominar
a escrita, para que não mais fossem enganados pelos seringalistas e pudessem controlar suas
Já na atualidade, existem várias escolas indígenas nas aldeias com professores também
indígenas onde as crianças são ensinadas em português e em suas línguas maternas. Isso
parece ter sido possível, sobretudo, em razão da participação do povo Kaxinawá em um
projeto realizado pela Comissão Pró-Índio do Acre, denominado de “Uma experiência de
Autoria” e iniciado em 1983. Esse projeto proporcionou aos indígenas capacitação
profissional para que se tornassem monitores, agentes de saúde e professores indígenas. O
resultado deste projeto foi a publicação de 13 títulos, alguns em co-autoria e outros de autoria
exclusivamente indígena (ALMEIDA, 2004).
De acordo com o Programa de Formação Intercultural Diferenciada e Bilíngue de Professores
Indígenas do estado do Acre, “todo o projeto foi pensado a partir das próprias expectativas
dos indígenas para a obtenção de conhecimentos que garantiriam a posse e o gerenciamento
dos seus territórios” (ACRE, 2004, p.111), possibilitando, assim, melhorar as condições em
suas comunidades, reforçando a língua materna, os costumes e as tradições dos Kaxinawá.
2.1 A produção escrita indígena
Em suas pesquisas ALMEIDA (2004), constatou, entre 1996 e 1998, a existência de mais de
100 títulos de autoria indígena. Ela afirma que a maioria dessas obras atende a uma demanda
escolar, ou seja, são obras feitas para auxiliar os professores indígenas a ensinar as crianças
nas aldeias. Porém, os indígenas também produzem livros didáticos com a escrita de seus
mitos e lendas que ultrapassam os limites das aldeias e destinam-se à zona de contato com a
sociedade nacional. É notório que essa produção vem aumentando e que cada vez mais toma
espaço no cenário da produção literária contemporânea (ALMEIDA & QUEIROZ, 2004;
Saindo do campo da oralidade e indo para o campo da escrita, os indígenas têm por objetivo
não só manter vivas suas tradições, mas divulgar para os não-índios aspectos de sua cultura.
Percebemos esse ideal de divulgação pelo fato de suas obras na sua maioria serem bilíngues –
em português e em língua materna indígena.
Esta literatura demora a ser reconhecida pela crítica talvez pelo fato de, na maioria das vezes,
pensarmos a literatura da maneira como a conhecemos hoje, tomando por modelo a produção
Nossa pesquisa tem especial interesse nas obras de autoria indígena coletiva. Este tipo de obra
funciona como um consenso, ou seja, com o que é comum entre os indígenas da mesma etnia:
Cada livro editado neste processo de criação literária serve para identificar que é a partir da terra que os livros são escritos. Assim como nossa tradição literária européia se baseia na textualidade [.], as várias literaturas indígenas servem- se da territorialidade (ALMEIDA,2004, p. 197).
Com suas produções escritas, os indígenas cada vez mais entram no circuito literário, pois
criam um público leitor e se envolvem com questões de produção de manuscritos,
levantamento de dados, edição, tradução e publicação, por exemplo.
Neste momento de nossa pesquisa, já podemos assinalar uma particularidade da literatura de
autoria indígena: a escrita coletiva. Esta é uma prática adotada não só pelos Kaxinawá, mas
Como exemplo da produção com autoria coletiva, podemos citar todo o processo de
elaboração do livro Shenipabu Miyui: história dos antigos. O processo de elaboração do livro
durou seis anos e incluiu uma viagem para o Peru para gravar as narrativas que os índios
contavam, pois os Kaxinawá do lado brasileiro acreditavam que os Kaxinawá do lado peruano
mantinham a cultura tradicional. Esse processo de gravação e coleta de dados durou três
meses e teve início em janeiro de 1989. Após todo este período de coleta, as lideranças
indígenas retornam ao Brasil e começam o processo de transcrição do material coletado para a
língua Kaxinawá. Entre 1989 e 1995, muito trabalho foi investido na obra, desde a transcrição
até a revisão final de todo o material, processo que foi liderado pelo professor indígena
Joaquim Paula Mana, que possui bastante experiência na escrita e reflexão sobre a língua
Kaxinawá, sua língua materna. A princípio, a ideia era de que o livro fosse escrito apenas na
língua Kaxinawá, para proporcionar uma valorização da língua, porém decidiram que também
seria traduzido para o português para que a sociedade em geral tivesse acesso à cultura
Kaxinawá. Todo o processo editorial colabora com o pensamento da existência da literatura
indígena na contemporaneidade, pois, escritos em coletividade, os textos passam a ter uma
No que diz respeito à recepção do material produzido pelos indígenas, podemos julgar como
positiva, pois os livros têm alcançado reconhecimento e estão chegando ao público de forma
eficaz (já nos referimos à indicação dessas obras em dois vestibulares federais). Além disso, é
possível encontrar estes materiais disponíveis para venda em sites de comercialização de
livros usados e um número considerável destas obras está disponível também em bibliotecas
físicas e virtuais de universidades federais brasileiras (realizando pesquisa bibliográfica
referente apenas à etnia Kaxinawá em sites de universidades foram encontradas obras de
autoria indígena, conferir Anexo I. Por fim, através da visibilidade que essas obras estão
alcançando, podemos identificar outra evidência da existência de uma literatura de autoria
indígena: por estarem produzindo, publicando e sendo lidos, tornam a escrita indígena de fato
2.2 O movimento editorial indígena
Baseando-se nas pesquisas de Maria Inês de Almeida, que mostram a existência de mais de
100 títulos de autoria indígena entre os anos de 1996 e 1998 e também levando em
consideração a pesquisa bibliográfica realizada no programa de iniciação científica
(PIBIC/UNIR/CNPq 2011-20122), podemos observar a existência de um movimento editorial
No passado, tudo que era produzido sobre as culturas indígenas ou que discutiam questões
relacionadas à temática indígena tinha um cunho antropológico ou linguístico. Nas três
últimas décadas do século XX e primeiras décadas do século XXI, vimos essa realidade ser
mudada com a publicação de dois títulos: Mitopoemas Yanoman (1978) e Antes o mundo não existia (1980). Tais obras representam os primórdios da co-autoria e da autoria indígena,
respectivamente, e já não podemos classificá-las como obras antropológicas ou linguísticas,
pois não são mais relatos de viajantes que se infiltraram na rotina das etnias, agora são os
próprios indígenas é quem falam, ainda que com assessoria de não indígenas. E percebemos a
preocupação dessas obras com a questão da linguagem esteticamente eficaz. São obras muito
bem ilustradas e pensadas de forma que melhor representem a beleza e a força cognitiva do
2 Pesquisa bibliográfica realizada durante o período de vigência do projeto (2011-2012), que visava encontrar o número de 120 referências bibliográficas concernentes à etnia Kaxinawá com o objetivo de montar um banco de dados on line.
A partir desses dois títulos surgiu a necessidade de se pensar uma nova categoria no âmbito
das letras nacionais: a literatura de autoria indígena. Podemos classificar essas duas obras
como o inicio de um movimento editorial que se expandiu por várias etnias no Brasil.
Ao revisitarmos alguns conceitos da teoria literária ocidental, nós podemos perceber que
estamos, de fato, diante de um movimento literário emergente. Porém, é preciso ter cautela ao
utilizar os conceitos da literatura ocidental para ler a literatura de autoria indígena, pois é
preciso atentar para o fato de que as condições de produção, de difusão e a cultura em questão
se diferem bastante da cultura ocidental e, portanto, devem ser analisadas em seus aspectos
Estes textos publicados refletem as marcas do momento em que foram escritos. Momento em
que a necessidade de preservação da cultura é forte, por causa do contato com outras culturas
que afetaram bastante os hábitos dos índios.
2.3 Especificidades da escrita indígena
Ao ler um livro de autoria indígena percebemos algumas peculiaridades que não encontramos
(pelo menos não com frequência) em livros de tradição ocidental. Tomando como exemplo
uma obra de autoria indígena, o livro Shenipabu Miyui, percebemos marcas de oralidade ao
longo de toda a obra. Trata-se de uma leitura simples e que, por ter marcas de oralidade tão
fortes, dá a impressão de que alguém nos conta as estórias ao vivo. Isso pode ser observado
neste trecho do mito Fumaça do Tabaco, presente na segunda edição da obra:
Tekã kuru tinha uma esposa. Enquanto ele ficou de porre de tabaco, sua mulher sempre andava para lá e para cá. Até que começou a namorar com outro cara. Ela começou a ir muito ao roçado. Às vezes, quando voltava, trazia um nambu. Botava na caçarola de barro e caía depois na rede. Fazia que dormia e ficava rosnando como se tivesse pesadelo[.] (OPIAC, 2000, p.41).
No trecho acima, percebemos que a história foi escrita de uma maneira bem próxima da
linguagem oral e corriqueira. Talvez isso se dê por causa de todo o processo de elaboração do
livro que consistiu em coletar e gravar as histórias contadas pelos membros da etnia, para,
depois, transcrever as histórias de maneira mais fiel possível. Em todo o processo de coleta,
transcrição e edição do material colhido houve a participação efetiva dos indígenas. Também
podemos atribuir essa maneira de escrever ao fato de que a escrita alfabética foi incorporada
por eles há um tempo relativamente pequeno. Outro fator é que as culturas indígenas em geral
são marcadas pela oralidade há muito tempo e para eles não há uma norma padrão de escrita
como há para a cultura ocidental. “O índio escreve normalmente ‘corrido’, em prosa”, afirma
MATOS (2011, p.36). A oralidade presente na escrita indígena é um dos desafios do processo
de tradução da língua materna indígena para a língua portuguesa, processo que também é
acompanhado pelos indígenas na edição da obra. O ideal neste caso não é o de eliminar a
presença da voz nos textos escritos, mas encontrar soluções de inscrevê-la por meio de uma
Antes de a escrita alfabética fazer parte do cotidiano indígena, as pinturas e os desenhos eram
uma maneira utilizada de representar ideias e formular conceitos. Esta é outra característica
presente nas obras de autoria indígena em geral: a maioria das obras são muito bem ilustradas,
com desenhos feitos pelos próprios indígenas. Essa característica talvez seja a grande
responsável pelo fato de que, por muito tempo, as obras indígenas terem sido qualificadas
como obras especialmente voltadas para o público infantil. Porém, o que não foi levado em
consideração foi a função que o desenho exerce dentro das comunidades indígenas. Para eles,
o desenho é uma forma de representar ideias e registrar histórias tão importante quanto a fala
e quanto a escrita, pois faz parte de seu modo de construção do conhecimento e produção de
2.4 Autoria coletiva
Quando falamos em escrita indígena é impossível não colocar em discussão uma
particularidade de algumas obras indígenas: a autoria coletiva. Durante a pesquisa
bibliográfica realizada, foram encontrados oito títulos de autoria coletiva Kaxinawá. A prática
de escrever livros em nome de um determinado povo, no caso os Kaxinawá, é uma prática
que se difere bastante da nossa cultura ocidental que. de certa forma, predominantemente
individualizou a figura do autor. Segundo Foucault:
[.] O nome do autor funciona para caracterizar um certo modo de ser do discurso: para um discurso, o fato de haver o nome de um autor, o fato de que se possa dizer “isso foi escrito por tal pessoa”, ou “tal pessoa é o autor disso”, indica que esse discurso não é uma palavra cotidiana, indiferente, uma palavra que se afasta, que flutua e passa, uma palavra imediatamente consumível, mas que se trata de uma palavra que deve ser recebida de uma certa maneira e que deve, em uma dada cultura, receber um certo status (FOUCAULT, 2006, p.9).
O que de fato parecem pretender os Kaxinawá, e também outras etnias que optam por este
tipo de escrita coletiva, é apresentar um estilo de escrita que é atribuída ao povo Kaxinawá
como um todo e não somente a um autor individual. O que se pode esperar em uma obra de
autoria Kaxinawá são traços, histórias e características exclusivas e comuns aos do mesmo
grupo, visando à valorização e divulgação de sua cultura.
Dos oito títulos encontrados, em que a autoria é atribuída ao povo Kaxinawá, todos abordam
questões que expõem as práticas de sua cultura. São obras que apresentam cantos
xamanísticos, práticas medicinais, artesanatos e outros assuntos que são comuns a todos os
Kaxinawá e que são diferentes de outras etnias, ou seja, apresentam as particularidades de sua
cultura, da maneira que eles a veem e a praticam. O que vemos é uma literatura produzida
para os Kaxinawá e para o mundo, que apresentam aspectos de sua cultura como nenhum
texto antropológico escrito por viajante ou cientista poderia escrever.
3 Shenipabu Miyui: 1ª e 2ª edições
O livro escrito pelo povo Kaxinawá que alcançou maior reconhecimento foi Shenipabu Miyui,
cuja primeira edição foi publicada em 1995; a segunda edição foi publicada em 2000. A
segunda edição saiu pela Editora UFMG e apresenta algumas mudanças em relação à
A primeira edição foi publicada pela Comissão Pró-Índio do Acre e é uma versão que
aparenta ter mais a “cara” dos índios. De início, o livro apresenta um texto escrito por uma
das coordenadoras do projeto editorial, Nietta Monte. É um livro que contém doze mitos do
povo Kaxinawá, apresentados em língua materna indígena e, logo em seguida, em língua
portuguesa. Cada mito também possui ilustrações feitas pelos indígenas que representam
momentos da história contada. Uma dessas ilustrações está presente na capa da obra. Os mitos
apresentados possuem uma escrita marcada pela oralidade e é em relação a isso que se pode
atribuir diferenças significativas entre as duas edições.
A segunda edição é mais trabalhada, o livro é maior em dimensão física e apresenta uma capa
diferente da primeira edição. A capa da segunda edição, projetada por Marcelo Belico, utiliza
ilustração de Raimundo Nonato Mana e usa elementos das pinturas Kaxinawá. Nesta edição
foi adicionado um sumário e também mais informações na nota introdutória escrita por Nietta
Monte sobre os Kaxinawá. Na parte dos mitos não há mudanças no conteúdo das histórias, o
texto é apenas revisado e algumas palavras são acrescentadas e outras excluídas. Nessa
revisão, nota-se a perda de parte das marcas de oralidade presentes na primeira edição, pois as
estórias estão mais próximas da norma padrão de escrita em português.
A impressão de leitura é que a segunda edição tem uma interferência maior de não indígenas,
e isso teria influenciado no resultado final da edição. Isto é, a segunda edição parece mais
próxima à cultura ocidentalizada, o que não prejudica, contudo, a beleza do conteúdo das
estórias apresentadas, uma vez que essas possuem um traço indígena forte, como veremos a
3.1 Temáticas do livro Shenipabu Miyui
MATOS (2011) afirma que, durante o período em que esteve ministrando aulas de literatura
que na Comissão Pró-Índio do Acre, notou que a maioria dos textos produzidos pelos
professores indígenas em formação eram produzidos na disciplina de Geografia:
Esta área disciplinar, que lida com as questões da terra e da natureza, parece especialmente adequada para motivar a expressão indígena, suscitando relatos e reflexões que ultrapassam e modificam uma perspectiva meramente material sobre o mundo e a paisagem, articulando-se com questões culturais, subjetivas, identitárias, ontológicas. (MATOS, 2011, p.34)
Os mitos reunidos no livro Shenipabu Miyui são, em sua maioria, histórias que explicam a
origem dos elementos naturais e das práticas comuns ao povo Kaxinawá. No mito intitulado
História do Cipó Leve,é contada a história do surgimento de quatro cipós que, se ingeridos,
provocavam visões sobrenaturais diferentes, refletindo uma prática comum e muito estudada
por antropólogos: o consumo de chás de cipó nos rituais Kaxinawá.
Outro mito interessante, a respeito do surgimento da sabedoria relativa à medicina natural por
eles utilizada, é o mito História da Origem dos Remédios da Mata. Na história narrrada,
existe a personagem denominada Fêmea Roxa que conhecia as plantas medicinais e seus usos.
Segundo o mito, algumas pessoas morriam e tornavam-se remédios da mata. A personagem
Fêmea Roxa teria a responsabilidade de ensinar às futuras gerações sobre plantas e como usá-
las (desde remédios que curavam picadas de cobra, aranha e escorpião aos venenos naturais).
Porém, a Fêmea Roxa não usou bem os conhecimentos que possuía e começou a matar
algumas pessoas de quem ela não gostava. Seu neto, por fim, revela para a aldeia que sua avó
era a causadora das mortes, pois até o momento esse fato não era de conhecimento do resto do
povo. O povo reunido resolver matar a velha que fugiu por diversas vezes. O povo arma uma
cilada contra a velha e consegue matá-la. Nesse mito, percebemos a exaltação de uma tema
muito presente na cultura Kaxinawá: os remédios medicinais. É discutida, na narrativa, a
origem das plantas e dos conhecimentos sobre as funções que as plantas possuem. Tais
conhecimentos também já viraram tema principal de um livro (KAXINAWÁ, Edson ixã.
Doenças e curas do povo Huni Kui. Comissão Pró-Índio do Acre, 2006.), publicado pela
4 Conclusão
Observando o caminho percorrido pelo povo Kaxinawá, desde o contato com os ‘brancos’ até
a atualidade, percebemos um longo percurso trilhado em busca de uma voz própria e que seja
audível para a sociedade ocidental. Os frutos do movimento editorial iniciado pelos indígenas
estão chegando até nós em forma de livros em prosa e em poesia e já demandam uma nova
categoria dentro da literatura brasileira contemporânea: a literatura de autoria indígena. Este
status é merecido pela beleza e subjetividade das obras já publicadas pela etnia Kaxinawá.
Colocar este movimento em destaque é prioridade, pois deverá ser apropriadamente
reconhecido como parte da literatura brasileira. Para isso, é necessário olhar com novos olhos
para os livros da floresta, observando as características da cultura indígena que, sendo
diferente da cultura ocidental, apresenta elementos singulares, mas constituintes da
comunidade estética que vigora no Brasil.
Evidenciar as diferenças e procurar perceber a voz dos grupos indígenas que mostram agora,
por meio dos livros da floresta, que não são culturalmente menores ou necessariamente
infantis é uma tarefa urgente. Nesse sentido, Matos (2011) traz à tona uma questão
O olhar do estudioso de literatura, também capacitado para captar a dimensão estética dos textos, parece às vezes, todavia, intimidar-se diante de textualidades estranhas à sua própria tradição poética, como são os repertórios de tradição oral e a escrita incipiente de indivíduos formados numa cultura de dominância oral (p.48).
É preciso, pois, visualizar a questão das diferenças – a marca da alteridade – que há na
produção escrita indígena, fruto de uma cultura de tradição oral, em relação à nossa de
tradição escrita, sem impossibilitar que os elementos de beleza e as marcas de estilo étnico e
de subjetividade presentes nessas obras cheguem ao mundo como texto, como discurso vivo.
5 REFERÊNCIAS
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Biofarmacia y Farmacocinética 381 ESTUDIO DE LA PERMEABILIDAD DEL SALBUTAMOL EN CÉLULAS CACO-2: CLON TC7 Belén Valenzuela1,2, Adela Martín-Villodre1, Amparo Nácher1 (1) Dpto. Farmacia y Tecnología Farmacéutica, Universidad de Valencia. Avda. Vicente A. Estellés s/n 46100 Burjassot (Valencia) (2) Dpto. de Ingeniería, división de Farmacia y Tecnología Farmacéutica. Unive