Para acabar com o privilégio do produto
O pensamento de Gilbert Simondon é muito pouco conhecido. No Brasil podemos dizer que é
completamente desconhecido. Apesar da notoriedade que atualmente ele vem conhecendo, a partir das
questões surgidas com a "nova ciência" relevando o caos e a complexidade -- figuras tradicionais do
pensamento simondoniano --, a ponto de merecer um Colóquio, em março de 1992, organizado pela Cidade
das Ciências e da indústria e pelo Colégio Internacional de filosofia e inaugurado pelo Ministro da Pesquisa
e da Tecnologia francês, não podemos dizer que os conceitos desenvolvidos em sua obra tenham se tornado
moeda corrente no campo da reflexão sobre as relações entre a vida e a técnica. E, no entanto, Simondon
não fez outra coisa senão afirmar, em todos seus escritos, que os problemas da vida eram questões técnicas
e que a técnica era um fenômeno vital.
Mesmo hoje, após o desenvolvimento da Etologia e da Cibernética, uma afirmação categórica
desta natureza produz, naquele que a escuta, uma reação natural de asco e repúdio, semelhante a que Henri
Van de Velde tinha quando ouvia, na Deutscher Werkbund, as proposições de Hermann Muthesius
exigindo que a máquina "domesticasse" a "ferocidade" do artista. Imediatamente elevam-se vozes que
protestam através de discursos onde a presença de palavras como liberdade, criatividade, robotização e
mecanização são obrigatórias. Frases que comparam, pejorativamente, as produções da técnica face às
"criações" da natureza espocam por toda parte, como garrafas de champagne em festa de reveillon. Embora
nem Simondon, ou tampouco eu, queiramos produzir este frenesi de embriaguês humanista quando somos
levados a tecer considerações deste teor, elas surgem tão naturais como flanelinhas em sinal de trânsito,
transformando-nos em cientistas malignos a conspirar contra a liberdade humana.
Abrogo, portanto, um habeas corpus à paciência do leitor prometendo-lhe de antemão que
nenhum pedacinho do que for uma liberdade e criatividade humanas serão danificados nesta breve
introdução aos conceitos básicos do pensamento de Simondon. Pois o que vigora e dificulta o entendimento
de sua afirmação da técnica como fenômeno vivo é um preconceito contra a própria técnica, herdado do
exagerado enaltecimento do símbolo e dos fenômenos simbólicos criado pelo pensamento das luzes onde é
postulada uma identidade entre o homem e a razão, sendo o símbolo seu produto mais nobre. Se a razão
exprime pela técnica uma coisificação do mundo, reduzindo todos os fenômenos a coisas que podem ser
dominadas e operadas, com o símbolo ela exprimiria um desejo de comunicação e um reconhecimento da
presença de outros sujeitos no mundo. Na técnica a inteligência seria reduzida à astúcia no jogo de forças e
poder visando a dominação. No símbolo ela se reencontraria com outras inteligências e reconheceria a
presença do pensamento como algo que pode fazer parte da ordem do mundo. Enquanto nas sociedades
bárbaras e despóticas haveria um desenvolvimento acentuado da técnica e da engenharia fazendo
prevalecer a guerra e a dominação, nas sociedades civilizadas e democráticas o símbolo prevaleceria
desenvolvendo a cultura e as artes tornando a comunicação e o entendimento os principais elementos da
relação do homem com o mundo. Como num filme de faroeste temos desde já o mocinho e o vilão da
Muito já se discutiu no campo do design sobre os problemas projetuais envolvendo as
relações entre forma e função, estética e mecanismo, símbolo e técnica na concepção do produto. E em toda
teoria projetual a produção é pensada privilegiando o produto como modelo da produção e da teoria. O
objeto é pensado hilemorficamente como mistura das formas vivas com uma matéria inerte, ou então o é
substancialmente como identidade entre forma e função cuja essência resiste em luta contra os acidentes de
figura e confecção. A passagem da concepção do produto para sua efetivação viveria assombrada pelo
abismo epistemológico entre teoria e prática gerados pelo pensamento hilemórfico ou substancialista. Por
isto Simondon, quando se propõe a pensar o surgimento dos indivíduos desenvolve uma crítica rigorosa
contra esta herança platônico-aristotélica de nosso pensamento. Nesta crítica ele revela o pressuposto
comum às duas teorias: a individuação de algo precisaria de um princípio anterior a ela que a explicasse e a
produzisse. Temos aí uma clara hierarquia que faz o gozo divino daquele que projeta, pois primeiro vem o
princípio, a concepção de algo, que formal e racionalmente a determina, depois vem um processo
concebido em termos da realização da coisa e, finalmente, vem a própria confecção. Desta forma o sentido
das coisas é alheio a elas e depende daquele que as concebe. O indivíduo está alienado de sua própria
individuação advindo a ela apenas como produto final e acabamento.
Simondon desenvolve uma teoria para pensar a individuação sem dar ao indivíduo o
privilégio do modelo. Ele quer pensar uma produção ilimitada que caminhe por si própria, sem depender de
princípios, onde os indivíduos surgem como fases expressivas da própria produção. A individuação não
seria mecânica e sim maquínica pois sua força não viria do motor imóvel de uma idéia mas dos regimes de
afecção, seu desenvolvimento seria feito pelo desejo e não pela compulsão do encontro com uma forma ou
finalidade capaz de trazer-lhe uma quietude, e seu objeto não seria uma falta ou carência que precisasse
preencher e sim os modos afetivos surgidos do encontro entre os regimes de afecção e os desenvolvimentos
do desejo. O indivíduo para Simondon não é um objeto ou produto acabado, forma e finalidade de uma
produção, pois a produção seria uma ilimitada máquina de conceber e gerar seres na mesma medida em que
estes seres seriam máquinas desejantes de extrair e gerar afetos. O indivíduo de Simondon é a díada
formada pelo indivíduo e seu meio associado e a individuação se conserva no devir da própria díada. A
técnica é a realização da individuação, ao mesmo tempo sua interpretação e o que nela foi interpretado.
Celebra-se hoje no design brasileiro o produto e a comunicação como sua emancipação do
pantanoso terreno das paixões e idiosincrasias. A crítica de Simondon nos permite colocar a questão sobre
o produto e a comunicação como uma paixão a mais entre outras, escondendo velhas confusões entre
preservação e eternidade, entre imobilidade e permanência; revelando velhos sonhos de onipotência divina
nas formas de concepção. Permite-nos, também, postular um projeto voltado para a individuação onde a
produção seja considerada em seus regimes de afecção, em seus desenvolvimentos de desejos e em seus
modos afetivos. O designer é um produtor de sensibilidades, de modos de existência social, de práticas de
expressão coletiva. O produto não é objeto, tampouco coisa. Ele é um germe em torno do qual um mundo
Bibliografia
SIMONDON, G. L'Individu et sa Genèse Physico-Biologique, Paris, PUF, 1964.
. L'Individuation Psychique et Collective, Paris, Aubier, 1989.
. Du Mode d'Existence des Objets Techniques, Paris, Aubier, 1989.
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